Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto




Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada

A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.

Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!


Alberto Caeiro

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segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Paisagem




Acordando a densa folhagem
da mafurreira,
rouco, o grito da soa
rasga o ar parado.
Gorgolejando
responde o lagarto
humilde das pedras:

Dois tons
Na imensa orquestra do plaino.

Com fragmentados,
distantes murmúrios
de povoações algures,
paralelo, corre nas lonjuras
do sol mordente, um coro
fanhoso de cigarras.

Sob a comprida sombra de meus olhos
dormita uma adolescente negra,
finos, dengosos músculos
arquejando leve sob a pele lustrosa.

Nos confins da tarde
ri estridente um bêbedo
e mil vidas vibram poderosas
na falsa quietude dos matos.
De estranho metal,
nos espaços, cintilam agulhas.

Então,
uma brisa morna
arrasta as últimas folhas secas
por sobre
o rio e a foz.


Rui Knopfli

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sábado, 26 de dezembro de 2009

Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça


Foto @vanisland


Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea —
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma,
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem —
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.


Álvaro de Campos

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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Segundo canto para a renovação do Natal




A Noémia de Sousa

Tudo foi emprestado e alheio
Para que Deus nascesse conforme as Escrituras:
A gruta, que os presépios embelezam,
- Ou talvez um estábulo?
- Ou talvez o ventre autêntico da mãe?
A burra e a vaca,
José, que era o pai cómodo,
E a mãe, que era o empréstimo supremo,
O recurso, a verdade
E a necessidade
Para que Deus nascesse entre os homens,
Mais do que Deus,
Um Homem.
Havia os magos com presentes deslocados,
O astro dos sinais,
A voz, o anjo, os pastores e a frase
Que nos presépios fabricados
Fala da paz, dos homens e da boa-vontade.
Havia a noite e nós,
Filhos de pai e mãe,
Nascidos antes e depois à espera de que Deus viesse,
Fruto d'A que não teve marido neste mundo
Para que o filho deslizasse sem pecado.
E havia Herodes,
Para que não fosse fácil
O que era inevitável.
E houvesse drama.
Ora bem.
Entre a burra e a vaca,
Dentro do hálito tépido das bestas,
Sobre as palhas
E ao nível das tetas,
O menino jazia
Nascido,
Que é como quem diz cumprido
Da promessa que havia.
José,
Os magos e os pastores
Tinham a sua fé;
A estrela tinha o seu ofício de ser estrela;
A noite e as bestas tinham a sua inconsciência,
Que é tudo,
Porque tudo e nada são a mesma coisa;
O Menino tinha o mistério de ser menino
E já Deus;
Ela, Ela tinha a miséria de ser mãe
E só mãe.
Ela é o Natal.
Ora bem.
Não falemos de Herodes, nem dos magos, nem dos pastores,
Nem sequer de José,
Do amável, do amoroso José
Que nos enternece
E discreto desaparece
Pela esquerda baixa
Do primeiro quadro da tragédia
De que somos o coro
- E também a tragédia.
Mas falemos d'Ele,
Que Ele é Ele,
Mesmo quando se faz pequenino
Para ter o nosso tamanho.
Não falemos da noite,
Que é um pouco mais que tudo isso,
- E menos do que a mãe,
De quem falemos.
Ora bem.
Ela ali estava para ser pintada.
Para ser pintada na vista do conjunto
Que é o Natal,
Comparsa dos presépios que hão-de vir,
Entre arraiais e foguetes
E estrelas de papel.
Ela ali estava para ser pintada
Na fuga para o Egipto,
Ao trote gracioso do burrito,
Sem vaca, só com José e o deserto e as escrituras,
Que mandam mais que Herodes
E todos os seus bigodes.
Ela ali estava para ser pintada.
Para ser pintada – pouco e bem –
Sem o burrito, só com Sant'Ana e S. José
No breve engano de ser só mãe
Dum filho que fosse só filho.
Ela ali estava para ser pintada
No alarme de Jesus entre os doutores.
Ela ali estava p'ra não ser pintada
Depois que Jesus fez trinta,
Antes dos trinta e três
(Disseram trinta doutores:
- Diga trinta e três.
Ele disse.
Ele disse e morreu
Sem sofrer dos pulmões).
Ela ali estava para ser pintada
E no zénite de Jesus ser Jesus,
Depois dos trinta,
Quando Jesus
Fez
Trinta e três,
Ela ressuscitou pintura ao pé da cruz.
Ora bem.
A cruz que Ele trazia,
Mal lhe pesava.
Ele esperava.
Ele salvava.
Ele descia
E por isso subia.
Ela era mulher, era mãe – e Sabia.
A sua cruz
Era Jesus.
O seu inferno
Era ser mãe do Eterno
Que havia de sangrar
E morrer
Pelo caminho.
Por isso é que Ela mal se vê no palheiro,
Que é como quem diz, no estábulo.
Não é a estrela que A deslustra
(O Universo e todos os seus astros
Não valem o que Ela é);
Não são os magos que A repelem
Para o canto, de não ser rainha,
Porque Ela o é dos reinos que eles buscavam;
Não é José que A excede, porque José é José,
E isso lhe basta sem ser bastante;
Não é o Filho que A tolda,
Porque Ela é a Mãe.
Ora bem.
É ser a Mãe.
É ver que o Seu menino
Não é apenas menino,
Mas a dose anunciada
De Homem e Deus;
A ponte que tem de ser pisada
Para que haja estrada
Para os céus;
É o ser-lhe filho e ser-lhe pai,
O filho que Ela estremece
Vivo e já morto,
Porque o Pai quer e Ela obedece.
Irmãos em Cristo!
Irmãos do mesmo pai,
Quem quer que seja o Cristo
Que buscais.
Esta é a Sua hora!
A Sua – e a nossa.
Ela é o Natal.
Avé-Maria.
Ora bem.


Reinaldo Ferreira “Poemas” Livro III - Poemas de Natal e da Paixão de Cristo

(Para todos um Feliz Natal)

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Desde quando alguma vez anoiteceu




Desde quando alguma vez anoiteceu

E à angústia de que a terra se cobriu

Só pasmo nas esferas respondeu;

Desde quando alguma flor emurcheceu

E a criança que válida se ria

De repente calada apodreceu;

Desde quando a algum estio sucedeu

Um outro outono e a árvore se despiu

E a primeira cabeça encaneceu;

Desde quando alguma coisa que nasceu

Sem que o pedisse, sem remédio se degrada

E acaba, sob a terra que a comeu,

Dispersa entre os átomos dispersos,

Se acumula a tristeza deste dia

E a razão destes versos.


Reinaldo Ferreira, “Poemas”, Livro I – Um voo cego a nada, Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960.

(À minha Avó)

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Hino a Pã


Foto Petra Nemcova


Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da àmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Iô Pã! Iô Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão -
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!


Aleister Crowley
, tradução de Fernando Pessoa

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sábado, 19 de dezembro de 2009

Crazy


Diana Krall, Elvis Costello & Willie Nelson



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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Obrigado, Black Eyed Peas


Carlos Queiroz


Black Eyed Peas

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segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Inquietação




Meus dias de amargura,
meus cuidados,
Meus dolorosos dias de incerteza,
Perdidos cantos meus,
meus idos brados
De incompreendida dor
e de tristeza.

Risonhas horas minhas
de franqueza,
Calmos dias de riso emoldurados;
Tecidos de candura e de beleza,
De efémeras certezas clareados:

Se de entre vós eu escolher pudesse
As alegrias, essa breve messe
De ouro, ou a tristeza
e o seu vaivém

De dor, - eu preferiria toda a vida
Uma tristeza inquieta,
à adormecida
Certeza imóvel dum eterno bem…


Rui de Noronha, in “Miragem”, 2 de Julho de 1932


Lourenço Marques, 28 de Outubro de 1909 - 25 de Dezembro de 1943

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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Hold On

Tom Waits


They hung a sign up in our town"If you live it up, you won't live it down"So, she left Monte Rio, sonJust like a bullet leaves a gunWith charcoal eyes and Monroe hipsShe went and took that California tripWell, the moon was gold, her hair like windShe said don't look back just come on Jim

Oh you got to hold on, hold onYou got to hold onTake my hand, I'm standing right hereYou gotta hold on

Well, he gave her a dimestore watchAnd a ring made from a spoonEveryone is looking for someone to blameWhen you share my bed, you share my nameWell, go ahead and call the copsYou don't meet nice girls in coffee shopsShe said baby, I still love youSometimes there's nothin left to do

Oh but you got to hold on, hold onBaby got to hold onTake my hand, I'm standing right hereYou got to hold on

Well, God bless your crooked little heartSt. Louis got the best of meI miss your broken-china voiceHow I wish you were still here with me

Oh, you build it up, you wreck it downAnd you burn your mansion to the groundOh there's nothing left to keep you hereBut when you're falling behind in this big blue world

Oh you got to hold on, hold onBaby got to hold onTake my hand, I'm standing right hereYou got to hold on

Down by the Riverside motelIt's 10 below and fallingBy a 99 cent storeShe closed her eyes and started swayingBut it's so hard to dance that wayWhen it's cold and there's no musicOh your old hometown so far awayBut, inside your head there's a record that's playingA song called

Hold on, hold on, baby got to hold onTake my hand, I'm standing right there, you gotta hold onYou gotta hold on, hold on, baby gotta hold onTake my hand, I'm standing right there, you gotta hold onYou gotta hold on, hold on, baby gotta hold onTake my hand, I'm standing right there, you gotta hold onYou gotta hold on, hold on, baby gotta hold onAnd take my hand, I'm standing right there, you gotta hold onYou gotta hold on, you gotta hold on, you gotta hold onYou gotta hold on, you gotta hold on baby, you gotta hold onYou gotta hold on, you gotta hold on

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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Poema flácido


Foto Petra Nemcova

Estou farto de ouvir falar em sexo!
É sexo por tudo e por nada! Obsessão!
E até o mais lindo e bem dito poema
perde graça quando olhado assim!
Não perde verdade, não perde tesão.
Perde a graça de ser verdade, perde a sua ocasião.
O excesso é mais que fartura, é enfartamento.
É sexo por isto e por aquilo, é a ditadura
de ter de ser, acontecer, mandar,
forçar-nos - simplesmente não acontecer. Farta!
Mas como é lindo e é verdade, afinal ele comanda-nos
e a vida é a vida e é linda de se viver
lá vai um poema entesoado, coisa boa esta da tesão.
Afinal o poeta tem razão: o sexo comanda a vida.
E pese este enfartamento, este cansaço com a ditadura
do ter de ser – e já nem saber se quero ou sou obrigado a querer!
mando-te um pps bonito, este, deste que está cansado
de tanto sexo ver e ler (gosto do acontecer)
Gosto de ler palavras não explícitas que me incendeiem,
de ver um rasgo de carne descoberto
que sugira o que não se vê. Gosto de sexo.
Na verdade mais do sonhado, esses momentos
em que somos o que não somos pois a perfeição existe nos sonhos,
nos momentos em que o comando não é nosso mas sim da ilusão.
Afinal o sexo comanda-nos ou não?
Sei lá, que tenho momentos em que duvido,
de tanto dele ler e ver, que ainda tenha tesão!


Carlos Gil



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Now playing: The Beatles - The Fool On The Hill

via FoxyTunes


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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Desafinado


Tom Jobim & João Gilberto

Nos quinze anos da morte de Tom Jobim.

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Earth Song


Michael Jackson

Nunca fui fã do homem, mas desconhecia esta canção.

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sábado, 5 de dezembro de 2009

Música de fim de dia


Foto @vanisland

Volto aos velhos livros de antigamente
no quarto comprido e vazio.
Com um silêncio sem estrelas
toco-lhes amargurado.
Para lá da poeira e da alteração
aparente
nem tudo está mudado.
A cadeira em que te sentavas
ali está, Rui Guerra. E tu onde estarás?
Não faço ideia. Tanto me ressoam
teus passos à cadência do boulevard
como ao pisar duro do planalto de Castela.
Não importam, este abandono e esta secura.
O sentido da vida anda por detrás
do eco das nossas palavras. Tu com ele.
(outros tomas estupefacientes e emborracham-se
de cabotinismos.) Aqui um papel
amachucado com a tua letra:
Estudos para um ensaio de composição plástica dinâmica.
Além, outro do Lagarto-pintado (Onde andará ele?
Olhando o manso Tejo dos poetas?
Amando as prostitutas da rua do Mundo?)
É um poema para Eluard morto:
Deixem-lhe nos lábios
uma asa nervosa de cigarra…
Embora de vós nada saiba
e os livros, os papéis e as conversas,
sejam antigos como a adolescência,
não esqueço a história dos dedos
da mão. Nem vós.
Assim arrasto a minha inutilidade
e lembranças como feridas.
São o que de melhor tenho
com o sonho esboroado daquilo que não fui.
Morcegos desprendem-se dos telhados
com a chegada da noite.
Comovido,
no quarto comprido e vazio,
volto aos velhos livros de antigamente.


Rui Knopfli

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Now playing: Tom Waits - Better off Without a Wife

via FoxyTunes

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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dia da Restauração


Bandeira de Portugal em 1640



Defenestração de Miguel de Vasconcelos no Terreiro do Paço
(para avivar a memória de alguns traidores...)




El-Rei Dom João IV "O Restaurador"



Aclamação de Dom João IV como Rei de Portugal



Pavilhão pessoal de El-Rei Dom João IV



Monumento aos Restauradores da Pátria em Lisboa


"De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento"
(Ditado popular)

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