Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

domingo, 29 de março de 2009

Adeus



Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

E o que nos ficou não chega

Para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

Gastámos as mãos à força de as apertarmos,

Gastámos o relógio e as pedras das esquinas

Em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro,

Era como se todas as coisas fossem minhas:

Quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.

E eu acreditava.

Acreditava,

Porque ao teu lado

Todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

Era no tempo em que o teu corpo era um aquário,

Era no tempo em que meus olhos

Eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade,

Uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,

Já se não passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

Tenho a certeza

De que todas as coisas estremeciam

Só de murmurar o teu nome

No silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.



Adeus.


Eugénio de Andrade

Etiquetas: ,

quarta-feira, 25 de março de 2009

O tempo sujo


foto Digital no Índico

Há dias que eu odeio

Como insultos a que não posso responder
Sem o perigo duma cruel intimidade
Com a mão que lança o pus
Que trabalha ao serviço da infecção

São dias que nunca deviam ter saído
Do mau tempo fixo
Que nos desafia da parede
Dias que nos insultam que nos lançam
As pedras do medo os vidros da mentira
As pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
Que se espelha no céu
Dias do dia-a-dia
Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho

O sono centenário
Mal vestido mal alimentado
Para o trabalho
A martelada na cabeça
A pequena morte maliciosa
Que na espiral das sirenes
Se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime
Onde vi o necessário onde aprendi
Que só entre os homens e por eles
Vale a pena sonhar.

Que o sol não se ponha mais amanhã
Nem jamais se oculte na noite da indiferença.



Alexandre O'Neill

Etiquetas: ,

segunda-feira, 23 de março de 2009

Queda



E eu que sou o rei de toda esta incoerência,

Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la

E giro até partir ... mas tudo me resvala

Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de oiro,

Volve-se logo falso ... ao longe o arremesso...

Eu morro de desdém em frente dum tesoiro,

Morro á mingua, de excesso.



Alteio-me na cor à força de quebranto,

Estendo os braços de alma – e nem um espasmo venço!...



Peneiro-me na sombra – em nada me condenso...

Agonias de luz eu viro ainda entanto.



Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,

vencer às vezes é o mesmo que tombar –

e como inda sou luz, num grande retrocesso,

em raivas ideais ascendo até ao fim:

olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso ...



Tombei ....



E fico só esmagado sobre mim !...


Mário de Sá-Carneiro

Etiquetas: ,

sábado, 21 de março de 2009

Pround Mary, -what's love got to do with it?


Ike & Tina Turner


Tina Turner

O mangusso anda a precisar de levantar qualquer coisa..., a moral, entre outras!!!

Etiquetas: , ,

sexta-feira, 20 de março de 2009

Ainda que mal...



Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano:amor.

Carlos Drummond de Andrade

Etiquetas: , ,

terça-feira, 10 de março de 2009

25 de Abril: "havia gente, havia ideias, havia um País e havia uma esperança"

Mário Crespo entrevista Henrique Medina Carreira.

Porque o vídeo é muito pesado, fica o elo.

quinta-feira, 5 de março de 2009

She


Elvis Costello


À Maria, minha sobrinha-neta, no primeiro aniversário.

Etiquetas: ,

quarta-feira, 4 de março de 2009

Reverência ao Destino



Falar é completamente fácil, quando se tem palavras em mente que expressem sua opinião.
Difícil é expressar por gestos e atitudes o que realmente queremos dizer, e o quanto queremos dizer, antes que a pessoa se vá.

Fácil é julgar pessoas que estão sendo expostas pelas circunstâncias.
Difícil é encontrar e refletir sobre os seus erros, ou tentar fazer diferente algo que já fez muito errado.

Fácil é demonstrar raiva e impaciência quando algo o deixa irritado.
Difícil é expressar o seu amor a alguém que realmente te conhece, te respeita e te entende. E é assim que perdemos pessoas especiais.

Fácil é ver o que queremos enxergar.
Difícil é saber que nos iludimos com o que achávamos ter visto.

Fácil é abraçar, apertar as mãos, beijar de olhos fechados.
Difícil é sentir a energia que é transmitida. Aquela que toma conta do corpo como uma corrente elétrica quando tocamos a pessoa certa.

Fácil é ditar regras.
Difícil é seguí-las. Ter a noção exata de nossas próprias vidas, ao invés de ter noção das vidas dos outros.

Fácil é perguntar o que deseja saber.
Difícil é estar preparado para escutar esta resposta. Ou querer entender a resposta.

Fácil é sair com várias pessoas ao longo da vida.
Difícil é entender que pouquíssimas delas vão te aceitar como você é e te fazer feliz por inteiro.

Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade,
que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.


Etiquetas: ,

terça-feira, 3 de março de 2009

Águas de Março


Elis Regina


É pau, é pedra, é o fim do caminho

É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol

É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

É peroba do campo, é o nó da madeira

Caingá, candeia, é o Matita Pereira



É madeira de vento, tombo da ribanceira

É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira

É a viga, é o vão, festa da cumeeira

É a chuva chovendo, é conversa ribeira

Das águas de março, é o fim da canseira

É o pé, é o chão, é a marcha estradeira

Passarinho na mão, pedra de atiradeira



É uma ave no céu, é uma ave no chão

É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho

No rosto o desgosto, é um pouco sozinho



É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto

É uma ponta, é um ponto, é um pingo pingando

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando

É a luz da manhã, é o tijolo chegando

É a lenha, é o dia, é o fim da picada

É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É o projeto da casa, é o corpo na cama

É o carro enguiçado, é a lama, é a lama



É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã

É um resto de mato, na luz da manhã

São as águas de março fechando o verão

É a promessa de vida no teu coração



É uma cobra, é um pau, é João, é José

É um espinho na mão, é um corte no pé

É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã

É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão

É a promessa de vida no teu coração



António Carlos Jobim

Etiquetas: ,

domingo, 1 de março de 2009

Aniversário


Carlos Queiroz