Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Summertime

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Na vida somos iguais




Na vida somos iguais

Às peças que no xadrez

Valem o menos e o mais,

Segundo o acaso que a fez.


Do mesmo cepo nascer

Para as batalhas pensadas,

Aos mais, peões de perder,

A raros, ficções coroadas.


Mas, findo o jogo, receio

Que, extintas as convenções,

Durma a rainha no meio

Dos mal nascidos peões.


Reinaldo Ferreira, “Poemas”, Livro I – Um voo cego a nada

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Sociologia



Tenho o meu pequeno tratado de sociologia,

uma sociologia de horizontes modestos.

Ponho-me a remorder

continentes, povos, hábitos e costumes,

mas a minha sociologia não

passa disto,

uma sociologia de esquinas.

Da malta e das esquinas,

e tudo muito limitado.

Vem antes de mim

e irá para além um pedaço.

Antes, era o grupo do Jacaré,

a geração que me precedeu.

Vinham. como sempre, após os estudos,

por volta das cinco da tarde,

um a um,

sentar-se na dobra do passeio, à esquina,

alguns inda vinham da geração anterior.

Agora outro grupo, outra esquina,

outros nomes (alguns ainda se sentaram

à minha beira).

As coisas mudam muito,

mas nesta essencialidade

a malta permanece.

E, ainda,

com a brisa da tarde a cair,

se vêm sentar na borda do passeio,

à esquina.

Eu aqui mordo-me de lembranças

e saudades,

faço esta sociologia

e nunca mais, com a brisa da tarde a cair,

me irei sentar na borda do passeio,

à esquina...


Rui Knopfli

terça-feira, 14 de agosto de 2007

A Vida a brincar



Em pequenina,

Não me lembro a que brincava.

Certamente ao Amor de meu Pai e minha Mãe,

Com gracejos, risos dobrados, mimos, beijos e abraços.

Em pequena,

Brincava à macaca, às escondidas, à bola, ao berlinde,

Às casinhas, ao faz de conta ,

E a tantas coisas mais,

Com contos de bruxas e fadas

Reinos, príncipes e princesas,

Risos, gargalhadas, gritos, algazarra,

Zangas, discussões, bofetões, correrias e tropeções.

Na adolescência,

Brincava ao aprender, ao saber e aos namorados,

Com contos de heróis e heroínas,

Olhares, piscadelas, rubores, sorrisinhos,

Cochichos, segredinhos,

Promessas, beijos, abraços,

E tantas coisas mais!

Na juventude,

Brincava às verdades que me ensinaram,

Com amor, força, sonhos, ilusões,

Lutas, perdas, conquistas,

Luz no rosto, palavras de todos os sons musicais,

E tantas coisas mais!

Eu tinha Vida.

O brilho foi-se apagando,

A musica,

Cada vez mais baixo a ouvia.

E eu que brincava,

Estava quase adormecida, mas prosseguia.

Tive medo de caminhar no sono, no nada e no silêncio.

Olhei para trás e recordei,

Como tinha sido bom brincar com tudo o que brinquei.

Acordei e fiz jura de continuar a brincar.

Hoje,

Não brinco ao faz de conta.

Brinco de outro jeito, a muito do que brinquei,

Às verdades que criei,

Ao nada, ao silêncio, a mim e à Vida,

Com tudo o que brinquei e tantas coisas que aprendi.

Quero continuar a brincar a tantas coisas mais

Com tudo o que brinquei e o que ainda não sei.


Autor Com nome”


sábado, 11 de agosto de 2007

Agora as palavras



Obedecem-me agora muito menos,
as palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoam
a mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo-de-artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão, e elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.
Com elas fazia o lume,
sustentava os meus dias, mas agora
estão ariscas, escapam-se por entre
as mãos, arreganham os dentes
se tento retê-las. Ou será que
já só procuro as mais encabritadas?

Eugénio de Andrade

In "O Sal da Língua" Precedido de Trinta Poemas, Bibliotex, 2001

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Epigrama



Os teus lábios, digo-te, não são doces
como mel.

(O mel
acaba por enjoar.)

Mas são doces, os teus lábios, digo-te.
Mas doces como quê?
Ora, doces como eles são.

Doces?

Sim, olha, doces como o pão
que todos os dias comemos
sem fartar.

Rui Knopfli

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Impressão digital



Os meus olhos são uns olhos.

E é com esses olhos uns

Que eu vejo no mundo escolhos

Onde outros com outros olhos,

Não vêem escolhos nenhuns


Quem diz escolhos diz flores.

De tudo o mesmo se diz.

Onde uns vêem luto e dores

Uns outros descobrem cores

Do mais formoso matiz.


Nas ruas ou nas estradas

Onde passa tanta gente,

Uns vêem pedras pisadas,

Mas outros, gnomos e fadas

Num halo resplandecente.


Inútil seguir vizinhos,

Querer ser depois ou ser antes,

Cada um é seus caminhos.

Onde Sancho vê moinhos

D. Quixote vê gigantes.


Vê moinhos? São moinhos.

Vê gigantes? São gigantes.


António Gedeão

Reinaldo Ferreira

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Vivo na esperança de um gesto



Vivo na esperança de um gesto
Que hás-de fazer.
Gesto, claro, é maneira de dizer,
Pois o que importa é o resto
Que esse gesto tem de ter.
Tem que ter sinceridade
Sem parecer premeditado;
E tem que ser convincente,
Mas de maneira diferente
Do discurso preparado.
Sem me alargar, não resisto
À tentação de dizer
Que o gesto não é só isto...
Quando tu, em confusão,
Sabendo que estou à espera,
Me mostras que só hesitas
Por não saber começar,
Que tentações de falar!
Porque enfim, como adivinhas,
Esse gesto eu sei qual é,

Reinaldo Ferreira, "Poemas", Livro I - Um voo cego a nada