Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Uniforme de Poeta



Ajustei a minha cabeleira longa,

coloquei-lhe ao de cima meu

chapéu de coco em fibra sintética,

sacudi a densa poeira das asas encardidas

e, dependurada a lira a tiracolo,

saio para a rua

em grande uniforme de poeta.

Tremei guardas-marinhas,

alferes do activo em

situação de disponibilidade:

meu ridículo hoje suplanta

o vosso e nele se enleia e perturba

o suspiro longo das meninas

romântico-calculistas.


Rui Knopfli

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Aniversário



Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade


"The windmills of your mind"



(ao Rui Alexandre)




segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Sem nada de meu



Dei-me inteiro. Os outros

fazem o mundo (ou crêem

que fazem) . Eu sento-me

na cancela, sem nada

de meu e tenho um sorriso

triste e uma gota

de ternura branda no olhar.

Dei-me inteiro. Sobram-me

coração, vísceras e um corpo.

Com isso vou vivendo.


Rui Knopfli

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

"Eugénio de Andrade" a "Eugénio de Andrade"



Sê paciente; espera
que a palavra amadureça

e se desprenda como um fruto

ao passar o vento que a mereça.


Eugénio de Andrade

sábado, 1 de setembro de 2007

Deixai os doidos governar entre comparsas



Deixai os doidos governar entre comparsas!

Deixai-os declamar dos seus balcões

Sobre as praças desertas!

Deixai as frases odiosas que eles disserem,

Como morcegos à luz do Sol,

Atónitas baterem de parede em parede,

Até morrerem no ar

Que as não ouviu

Nem percutiu

À distância da multidão que partiu!

Deixai-os gritar pelos salões vazios,

Eles, os portentosos mais que os mares,

Eles, os caudalosos mais que os rios,

O medo de estar sós

Entre os milhares

De esgares

Reflectidos nos colossais

Cristais

Hílares

Que a sua grandeza lhes sonhou!


Reinaldo Ferreira, “Poemas”, Livro I – Um voo cego a nada