Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

No princípio, só a vida existia



"No princípio, só a vida existia;
O mundo era o que havia
Ao alcance da vida...
E mais nada.

Tudo era certo, simples, claro.

Quando o passado passar
(E passará, porque o passado é hoje)
E o futuro vier
(E há-de vir, porque o futuro é hoje),
Então, sim; há-de saber-se tudo
E tudo será certo, simples, claro.

Eu, porém, não sei nada."

Reinaldo Ferreira,”Poemas” Livro IV, Dispersos, s.l.

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Quotidiano (Cotidiano)

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão

Seis da tarde como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão

Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor

Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Chico Buarque

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domingo, 24 de setembro de 2006

Garota de Ipanema

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Serradura



A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o «Matin» de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da «Capital»
Pelo nosso Júlio Dantas -
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual...

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!...

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta...

Isto assim não pode ser...
Mas como achar um remédio?
- Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil - partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar «Viva a Alemanha»...
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade...

Vou deixá-la - decidido -
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

Mário de Sá Carneir
o

sábado, 23 de setembro de 2006

Memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido

contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

O essencial é ter o vento



O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.

Reinaldo Ferreira
, "Poemas" Livro I - Um Voo Cego a Nada

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Como Os Nossos Pais

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domingo, 17 de setembro de 2006

Another Brick in the Wall

Ao Rui Alexandre,

Tu foste o maior tijolo atirado ao meu “muro”, e tentei nos vinte anos seguintes,
ensinar-te que a todos os “muros” é necessário atirar os tijolos que os derrubem, para que o limite seja a linha do horizonte.


Obrigado!



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segunda-feira, 11 de setembro de 2006

África - Ilha de Moçambique




Não quero lembrar há quanto tempo deixei a ilha de Moçambique!
E apesar de tudo, ainda sou a mesma!
Filha eterna de quanta rebeldia me sagrou minha segunda Mãe
África – Ilha de Moçambique!
Minha, eternamente…!
Os meus segredos de criança
O mar os levou em lembrança e os contou às sereias.
Os estilhaços da minha adolescência,
Fincaram emulsionados na força da água e incrustaram as conchas do mar.
Os projectos da minha juventude ainda estavam a nascer.
Longe de ti amadureci.
Hoje,
Em minhas mágoas e saudade,
Vê de que Esperança me mantenho,
Da perigosa segurança de a ti voltar.
Pois dias há, que na alma tenho,
Um não sei quê, que nasce não sei de onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.
E para aliviar este mal que mata e não se vê
No silêncio te escrevo, minha segunda Mãe
África – Ilha de Moçambique!




Autor(a) Anónimo(a)

sábado, 9 de setembro de 2006

Conferência à Imprensa



O processo
- O que importa é virá-lo do avesso,
Mudar as intenções,
Interpretar,
Sofismar -
Deve ser rápido e sumário.
Termos, preceitos, norma,
É tudo forma,
Matéria de processo e convenção.
Ao cabo, é o Calvário
Que é preciso atingir.
Alguém tem de subir.
Eu não quis, sou juiz.
Aos senhores,
Mais propagadores
De tudo o que acontece
- De todo o que parece
Que acontece
E passa a acontecer -
E disto e daquilo
- E da Verdade, às vezes -
.......................




Reinaldo Ferreira