Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

quinta-feira, 30 de abril de 2009

O novo homem



O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.
Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.
Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.
Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.
O homem será feito
em laboratório,
muito mais perfeito
do que no antigório.
Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como flor
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:
"Nove meses, eu?
Nem nove minutos."
Quem já conheceu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.
Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.
Nele, tudo exato,
medido, bem-posto:
o justo formato,
o standard do rosto.
Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)
Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.
Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afeto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.
Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio
e, per omnia secula,
livre, papagaio,
sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,
eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem.
Bem feito.


Carlos Drummond de Andrade

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terça-feira, 28 de abril de 2009

Quase




Um pouco mais de sol — eu era brasa.

Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...........................................
...........................................

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá-Carneiro

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sábado, 25 de abril de 2009

Goodnight Saigon



Billy Joel

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sexta-feira, 24 de abril de 2009

Ao Carlos (Drummond de Andrade)



Não há guarda-chuva

contra o poema

subindo de regiões onde tudo é surpresa

como uma flor mesmo num canteiro.



Não há guarda-chuva

contra o amor

que mastiga e cospe como qualquer boca,

que tritura como um desastre.



Não há guarda-chuva

contra o tédio:

o tédio das quatro paredes, das quatro

estações, dos quatro pontos cardeais.



Não há guarda-chuva

contra o mundo

cada dia devorado nos jornais

sob as espécies de papel e tinta.



Não há guarda-chuva

contra o tempo,

rio fluindo sob a casa, correnteza

carregando os dias, os cabelos.




João Cabral de Melo Neto, "João Cabral de Melo Neto - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994

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terça-feira, 21 de abril de 2009

Samba de uma Nota Só


Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho e Miúcha

... e porque hoje é o dia do meu irmão.

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quinta-feira, 16 de abril de 2009

Light My Fire, Guajira


Carlos Santana, José Feliciano e Ricky Martin

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domingo, 12 de abril de 2009

É com esse que eu vou


Elis Regina

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sábado, 11 de abril de 2009

Não saibas: Imagina...


São Leonardo da Galafura

Deixa falar o mestre, e devaneia...

A velhice é que sabe, e apenas sabe

Que o mar não cabe

Na poça que a inocência abre na areia.



Sonha!

Inventa um alfabeto

De ilusões...

Um á-bê-cê secreto

Que soletres à margem das lições...



Voa pela janela

De encontro a qualquer sol que te sorri!

Asas? Não são precisas:

Vais ao colo das brisas,

Aias da fantasia...


Miguel Torga

Adenda

Este blog de copy & paste completou nesta data três anos, não foi por mero acaso, é o dia do aniversário de minha Avó, a quem devo as aias da fantasia...

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Now playing: Otis Redding - (Sittin' On) The Dock Of The Bay

via FoxyTunes

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quinta-feira, 9 de abril de 2009

Como dizer o silêncio?



Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.


O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.


Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?


Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.

Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.

E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.


Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.

Natália Correia







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Now playing: Bob Dylan - Blowin' In The Wind
via FoxyTunes

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terça-feira, 7 de abril de 2009

À Beira de Água


foto Digital no Indíco

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

Eugénio de Andrade


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Now playing: Roger Waters - Comfortably Numb
via FoxyTunes

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sábado, 4 de abril de 2009

Isto




Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Fernando Pessoa

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quinta-feira, 2 de abril de 2009

The Logical Song


Roger Hodgson & Ringo Starr

...e porque é o aniversário de minha Mãe.


Mother


Jonh Lennon

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quarta-feira, 1 de abril de 2009

Poema pouco original do medo



O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos.


Alexandre O' Neill

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