Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Índico



Olhar perdendo,

Pensamento vagueando,

Corpo esquecendo,

Tempo passando.

Gosto de olhar para o mar.



MD



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sexta-feira, 27 de junho de 2008

Pátria



Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nome por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as paredes. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial,
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.


Rui Knopfli

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quarta-feira, 25 de junho de 2008

Ó Terra dividida


Foto daqui


Tornaste-te Independente.
Mas mesmo assim não esqueci
O sal que resta nas minhas mãos
Como nas praias fica o perfume
Quando a maré desce e se retrai.

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: em mim não tem abrigo.
De ti não calo: mundo antigo,
pois nasces e morres em cada madrugada.

Não teimem, não insistam, não repitam.
Deixem-me viver como quem, teimando, insiste,
E, porque insiste,
Repete o tempo, no silêncio dos tempos,
Para que outros não ouçam.

MD


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segunda-feira, 23 de junho de 2008

Tous Les Garçons Et Les Filles...




Françoise Hardy



Hoje, comemora-se a noite de S. João, manjericos e namoricos, vem à memória todo aquele imaginário que povoam os sonhos no início da adolescência, e que o Carlos Gil tão bem sabe descrever.
Este post é para ele.


quarta-feira, 18 de junho de 2008

Curso Médico-Ciúrgico 72 da ULM


Clicar na imagem para ampliar

"... O médico toca-lhe os dedos. Ficam assim, mão na mão, um tempo. Não é por afecto: o médico aproveita para lhe contar a pulsação. O velho quase adormece. Conforme ele mesmo diz: «A velhice é assim, faz noite a qualquer hora»."


Mia Couto, in "Venenos de Deus, Remédios do Diabo", Caminho, Lisboa, 2008








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domingo, 15 de junho de 2008

With a little help from my friends




A quem, hoje, eu especialmente agradeço.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Prospero's Speech (... em Dia da Raça)




Loreena McKennitt



ILHA DE MOÇAMBIQUE, "ILHA DE PRÓSPERO", "ILHA DE CALIBAN"


Ilha Dourada


A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.Tudo mais são ruas prisioneira
se casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrima
se um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade.
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.


Rui Knopfli




Ilha de Moçambique


Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.

A voz cristalizada,
o segredo da rocha rumo ao pó.


E escutar a multidão

de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.

A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.
O poeta quer escrever
a voz na pedra.

Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.

Uns dizem: na pedra nasceu uma figueira.

Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.


Mia Couto



Ilha do meu alento, de Moçambique


Sei de cor,

Cada curva do teu corpo,

Os passos dos teus caminhos,

As sombras das tuas árvores e casario.

Sei de cor,

Cada dança das tuas ondas,

As carícias do teu vento,

Os cheiros da tua maresia.

Sei de cor,

Cada tom da cor do teu mar,

O calor e brilho do sol dos teus dias,

O luar e as estrelas das tuas noites.

Sei de cor,

Cada limite do teu horizonte,

A voz das tuas gentes,

A brandura das tuas horas.

Sei de cor,

A imagem do meu tempo.

Neste meu exílio sereno,

Onde tomei tamanho de gente.

Sei de cor,

Cada lágrima do teu rosto,

As angústias do teu olhar,

Os silêncios do tua voz,

A imagem de outro tempo!

E o que não sei de cor

Adivinho a sonhar.

Se me disserem que sou louca,

Logo minha voz com firmeza desmente.

Mas se for, tanto melhor!


MD



Pedras da Minha Terra


Valeu a pena escutar,

Valeu a pena a contemplação,

Das pedras da Minha Terra.

Acomodada num canto da nostalgia

Aqueci-me no manto da infância.

Deixei escorregar as saudades pelas pedras,

Fiz versos com gentil candura,

E reparei, que outrora,

Fabricava sonhos, era feliz e não sabia.

Mas as pedras,

Mostraram-me o avesso da brandura,

A sagrada maldição.

As pedras são tempo.

É nas pedras,

Que o tempo amanhece e esmaece,

É nas pedras que o tempo se escreve.

Em que lugar destas pedras,

Em que tempo distante

Eu me confundi?




MD



(actualizado em 21-06-08)

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