Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Sabia...


Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

Eugénio de Andrade

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quarta-feira, 1 de junho de 2016

... é isso!


Talvez a minha solidão seja excessiva, mas eu detestei sempre as coisas mundanas.
Estar com as pessoas apenas para gastar as horas é-me insuportável.

Eugénio de Andrade

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domingo, 30 de setembro de 2012

Pequena elegia de Setembro

 Foto Petra Nemcova

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.


Eugénio de Andrade


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sexta-feira, 29 de julho de 2011

Em Aranjuez com o teu Amor




Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.


Eugénio de Andrade

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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Pequena elegia de Setembro


Foto Petra Nemcova

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade

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sábado, 29 de agosto de 2009

Da maneira mais simples




É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Ás vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações.

Eugénio de Andrade

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terça-feira, 7 de abril de 2009

À Beira de Água


foto Digital no Indíco

Estive sempre sentado nesta pedra
escutando, por assim dizer, o silêncio.
Ou no lago cair um fiozinho de água.
O lago é o tanque daquela idade
em que não tinha o coração
magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo,
dói tanto! Todo o amor. Até o nosso,
tão feito de privação.) Estou onde
sempre estive: à beira de ser água.
Envelhecendo no rumor da bica
por onde corre apenas o silêncio.

Eugénio de Andrade


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Now playing: Roger Waters - Comfortably Numb
via FoxyTunes

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domingo, 29 de março de 2009

Adeus



Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

E o que nos ficou não chega

Para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

Gastámos as mãos à força de as apertarmos,

Gastámos o relógio e as pedras das esquinas

Em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro,

Era como se todas as coisas fossem minhas:

Quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.

E eu acreditava.

Acreditava,

Porque ao teu lado

Todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

Era no tempo em que o teu corpo era um aquário,

Era no tempo em que meus olhos

Eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade,

Uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,

Já se não passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

Tenho a certeza

De que todas as coisas estremeciam

Só de murmurar o teu nome

No silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.



Adeus.


Eugénio de Andrade

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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Respiro o teu corpo


Foto Petra Nemcova

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,

sabe a cal molhada,

sabe a luz mordida,

sabe a brisa nua,

ao sangue dos rios,

sabe a rosa louca,

ao cair da noite

sabe a pedra amarga,

sabe à minha boca.


Eugénio de Andrade

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sábado, 5 de julho de 2008

O lugar da casa



Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.



Eugénio de Andrade, in "O Sal da Língua"

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quinta-feira, 3 de julho de 2008

Despertar




É um pássaro, é uma rosa, é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou Mar, tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa, canto na ave, água no Mar.


Eugénio de Andrade

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terça-feira, 13 de maio de 2008

Contra a obscuridade



O olhar desprende-se, cai de maduro.

não sei que fazer de um olhar

que sobeja na árvore,

que fazer desse ardor


que sobra na boca,

no chão aguarda subir à nascente.

não sei que destino é o da luz,

mas seja qual for


é o mesmo do olhar: há nele

uma poeira fraterna

uma dor retardada, alguma sombra

fremente ainda


de calhandra assustada.


Eugénio de Andrade




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Now playing: The Beatles - When I'm Sixty-Four


via FoxyTunes


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terça-feira, 4 de março de 2008

Como se a pedra




Escuto como se a pedra
cantasse. Como
se cantasse nas mãos do homem.
Um rumor de sangue ou ave
sobe no ar, canta com a pedra.
A pedra nas suas mãos
obscuras. Aquecida
com o seu calor de homem.
O seu ardor
de homem. Escuto
como se fora a minúscula
luz mortal que das entranhas
lhes subisse à garganta.
A sua mortalidade
de homem. Canta com a pedra.


Eugénio de Andrade

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terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O lugar da casa



Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.


Eugénio de Andrade, In "O Sal da Língua"

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Ouço falar



Ouço falar da minha vocação

mendicante, e sorrio. Porque não sei

se tal vocação não é apenas

uma escolha entre riquezas, como Keats

diz ser a poesia.

Desci à rua pensando nisto,

atravessei o jardim, um cão

saltava à minha frente,

louco com as folhas do outono

que principiara, e doiravam

o chão. A música,

digamos assim,

a que toda a alma aspira,

quando a alma

aspira a ter do mundo o melhor dele,

corria à minha frente, subia

por certo aos ouvidos de deus

com a ajuda de um cão,

que nem sequer me pertencia.



Eugénio de Andrade, In "O Sal da Língua"

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