Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Desde quando alguma vez anoiteceu




Desde quando alguma vez anoiteceu

E à angústia de que a terra se cobriu

Só pasmo nas esferas respondeu;

Desde quando alguma flor emurcheceu

E a criança que válida se ria

De repente calada apodreceu;

Desde quando a algum estio sucedeu

Um outro outono e a árvore se despiu

E a primeira cabeça encaneceu;

Desde quando alguma coisa que nasceu

Sem que o pedisse, sem remédio se degrada

E acaba, sob a terra que a comeu,

Dispersa entre os átomos dispersos,

Se acumula a tristeza deste dia

E a razão destes versos.


Reinaldo Ferreira, “Poemas”, Livro I – Um voo cego a nada, Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960.

(À minha Avó)

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