Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sábado, 26 de abril de 2008

O Dia da Criação



Gênese, 1, 27

I


Hoje é sábado, amanhã é domingo

A vida vem em ondas, como o mar

Os bondes andam em cima dos trilhos

E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo

Não há nada como o tempo para passar

Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo

Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo

Amanhã não gosta de ver ninguém bem

Hoje é que é o dia do presente

O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade

Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios

Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas

Todos os maridos estão funcionando regularmente

Todas as mulheres estão atentas

Porque hoje é sábado.


II


Neste momento há um casamento

Porque hoje é sábado

Hoje há um divórcio e um violamento

Porque hoje é sábado

Há um rico que se mata

Porque hoje é sábado

Há um incesto e uma regata

Porque hoje é sábado

Há um espetáculo de gala

Porque hoje é sábado

Há uma mulher que apanha e cala

Porque hoje é sábado

Há um renovar-se de esperanças

Porque hoje é sábado

Há uma profunda discordância

Porque hoje é sábado

Há um sedutor que tomba morto

Porque hoje é sábado

Há um grande espírito-de-porco

Porque hoje é sábado

Há uma mulher que vira homem

Porque hoje é sábado

Há criançinhas que não comem

Porque hoje é sábado

Há um piquenique de políticos

Porque hoje é sábado

Há um grande acréscimo de sífilis

Porque hoje é sábado

Há um ariano e uma mulata

Porque hoje é sábado

Há uma tensão inusitada

Porque hoje é sábado

Há adolescências seminuas

Porque hoje é sábado

Há um vampiro pelas ruas

Porque hoje é sábado

Há um grande aumento no consumo

Porque hoje é sábado

Há um noivo louco de ciúmes

Porque hoje é sábado

Há um garden-party na cadeia

Porque hoje é sábado

Há uma impassível lua cheia

Porque hoje é sábado

Há damas de todas as classes

Porque hoje é sábado

Umas difíceis, outras fáceis

Porque hoje é sábado

Há um beber e um dar sem conta

Porque hoje é sábado

Há uma infeliz que vai de tonta

Porque hoje é sábado

Há um padre passeando à paisana

Porque hoje é sábado

Há um frenesi de dar banana

Porque hoje é sábado

Há a sensação angustiante

Porque hoje é sábado

De uma mulher dentro de um homem

Porque hoje é sábado

Há uma comemoração fantástica

Porque hoje é sábado

Da primeira cirurgia plástica

Porque hoje é sábado

E dando os trâmites por findos

Porque hoje é sábado

Há a perspectiva do domingo

Porque hoje é sábado


III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,

ó Sexto Dia da Criação.

De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas

E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra

E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra

Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.

Na verdade, o homem não era necessário

Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como

as plantas, imovelmente e nunca saciada

Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.

Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias

Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa

Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos

Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas

em queda invisível na terra.

Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes

Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia

Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo

Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda

e missa de sétimo dia.

Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das

águas em núpcias

A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio

A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.

Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos

Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas

Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade

Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo

E para não ficar com as vastas mãos abanando

Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança

Possivelmente, isto é, muito provavelmente

Porque era sábado


Vinícius de Moraes



---------------- Now playing: Né Ladeiras - Sonho Azul
via FoxyTunes

Etiquetas: , ,

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Hoje, como ontem!







Como os nossos Pais!

Elis Regina



quarta-feira, 23 de abril de 2008

Regresso de parte alguma



Regresso de parte alguma
Rico mais do que partira,
Pois trago coisa nenhuma
Sem desespero e sem ira.

Agora vivo contente
No meu exílio sereno;
Tomei tamanho de gente
E não me dói ser pequeno.

Pedra parada na calma
Tranquilidade dos charcos,
Deixem dormir minha alma,
Como apodrecem os barcos

Reinaldo Ferreira, in "Poemas", Livro I - Um voo cego a nada

Etiquetas: , ,

domingo, 20 de abril de 2008

Pedras da Minha Terra



Valeu a pena escutar,

Valeu a pena a contemplação,

Das pedras da Minha Terra.

Acomodada num canto da nostalgia

Aqueci-me no manto da infância.

Deixei escorregar as saudades pelas pedras,

Fiz versos com gentil candura,

E reparei, que outrora,

Fabricava sonhos, era feliz e não sabia.

Mas as pedras,

Mostraram-me o avesso da brandura,

A sagrada maldição.

As pedras são tempo.

É nas pedras,

Que o tempo amanhece e esmaece,

É nas pedras que o tempo se escreve.

Em que lugar destas pedras,

Em que tempo distante

Eu me confundi?


MD

Etiquetas: , ,

quarta-feira, 16 de abril de 2008

While My Guitar Gently Weeps



Porque sujaram as nuvens, porquê?

Tanto tempo depois e o que restou dá-se por nome tristeza e nada mais há quando paro o dia que me rodeia e penso em muito tempo atrás, tanto que era jovem e acreditava que sê-lo-ia para sempre tal como o sonho embala e alinda as ilusões fazendo-as eternas. Minto por omissão deliberada: há mais que tristeza, há fiozinhos mal amarrados que, hoje como ontem e como sempre desde então, provocam-me mal-estar quando me enleiam os pensamentos, aquele incómodo íntimo que as decepções, as desilusões não resolvidas trazem e se carregam no silêncio que mais pesa, a mágoa, a tal mágoa que nasce porque as ilusões terminam e o céu se acinzenta e se envelhece, num repente que não avisa de chegada, suavizando-a, e percebe-se o engano de ter acreditado que se seria jovem para sempre. É como uma dor, uma moínha constante que dá sinal de si quando leio, penso ou sinto o céu e as nuvens que idolatrei, e uma chuva de tristeza molha-me trinta e tal anos de memórias, data e marco que separou as águas entre continentes, na viagem matou um jovem e cristalizou a esperança, fê-la peça de museu a visitar em momentos nostálgicos, apenas, somente recordações.
Sinto-me órfão dum futuro que me foi prometido e dia-a-dia levou machadadas tão dolorosas que me fizeram desiludido fugitivo do que cobicei ser, da eterna juventude que acreditei merecer viver. Que acreditei, oh se acreditei… Essa dor não passa, passam é os anos que não a envelhecem, persiste a tristeza por ter sido jovem e ter assim acreditado o futuro, afinal vão e não infindo como o contavam e eu sonhava, sonhava e confiei até vir a dor, esta sem nome que lhe chame além de tristeza, ou mágoa, afinal apenas o tempo em que o céu se virou tanto que até os continentes mudaram, molharam-se-me as esperanças e nasceu um feio verdete na ilusão da eterna juventude que definitivamente a matou, surgiram os nós das memórias mal amarradas e disso tudo hoje, trinta e tal anos depois, lamento e conto.
Acreditei. Como podia não tê-lo feito? nunca nada nem ninguém me fizera assim sonhar, fora assim tocado e, qual ansioso noivo, suspirava e gemia no nosso namoro a céu aberto, esse mais puro e lindo do que alguma vez o vira, matizes que enfeitiçavam. Amantizamo-nos com o enlevo das juras de amantes, mas na hora do altar um de nós ou mesmo os dois não comparecemos, a memória já não o recorda com triste precisão. A paixão definhou e a tristeza não é bem-vinda a essa cerimónia. Falta mútua, fim de namoro sem culpas ou culpados individuais, fora o céu que se acinzentara e perdera o fulgor que era, fora, o seu maior fascínio.
Tanto tempo depois e o que restou dá-se por nome tristeza, e nada mais há quando paro o dia que me rodeia e penso que aqui envelheço quando houve tempos e tempos, ilusões de céus eternamente jovens. Dói, trinta e tal anos depois.

Carlos Gil

adenda:

a "memória" continua aqui

a amargura doce da memória…

no som, George Harrison, Ringo Star, Eric Clapton, Elton John e Phill Collins


sábado, 12 de abril de 2008

S. Leonardo da Galafura III




"A palavra "Galafura" deriva de Galafre, o nome de um rei

mouro que há muitos, muitos séculos atrás viveu com o seu povo

no local onde hoje se ergue a freguesia. Até que um dia, o rei

mouro e o seu povo foram expulsos pelos cristãos e tiveram que

fugir para a outra margem do rio Douro. E D. Mirra ficou no

palácio, situado no monte de São Leonardo, encantada por seu

pai.

Conta o povo que durante o dia, D. Mirra se passeia pelo mato

que cobre o monte, em forma de serpente. À noite, recolhe-se

na gruta, cuja entrada é guardada por dois dragões ("dois

monstruosos lagartos"), à espera que um homem jovem e valente

quebre o feitiço. E que precisa ele de fazer? Nada mais do

que, ao bater da meia-noite do primeiro dia de Janeiro,

enfrentar e matar os dois dragões. Uma vez cumprida essa

tarefa, a bela D. Mirra entregar-se-á em sôfrego acto de amor

no silêncio da noite e à luz do luar. Quebrado, por fim, o

encanto, a pequena gruta abre-se, mostrando a antecâmara de um

luxuoso palácio subterrâneo, onde D. Mirra e o seu jovem

príncipe viverão felizes para sempre."

MD

(clicar nas imagens para dimensão real)



Etiquetas: , ,

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Timbre



EU,

Morreu.
Só há ideal
No plural.
Tecidos
Como os fios que há nos linhos,
Parecidos
Entre nós como dois olhos,
Somos do tempo de viver aos molhos
Para morrer sòzinhos.


Reinaldo Ferreira, poema autográfico


adenda:
esta "ave" fez ontem(11/4) dois anos que voa, o que para diletância, enfim...

Etiquetas: , ,

quinta-feira, 10 de abril de 2008

São Leonardo da Galafura II



À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

Miguel Torga, in “Diário IX”

(clicar nas imagens para dimensão real)

Etiquetas: , , ,

terça-feira, 8 de abril de 2008

São Leonardo da Galafura




"O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que o deixa de ser à

força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam:

é um excesso de natureza. Socalcos que são passadas de homens

titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que

nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes

dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo

virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno

pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se

atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes,

ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro.

Um poema geológico. A beleza absoluta.”


Miguel Torga, in “Diário XII "

(clicar nas imagens para dimensão real)

Etiquetas: , , ,

sábado, 5 de abril de 2008

Poema enjoadinho




Elis Regina, Dina Sfat e Regina Duarte


Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!


Vinícius de Moraes



(à minha sobrinha-neta e aos seus Pais)

Etiquetas: , ,

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Yesterday




Um dia bonito.