" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli
domingo, 29 de outubro de 2006
Adeus
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, E o que nos ficou não chega Para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, Gastámos as mãos à força de as apertarmos, Gastámos o relógio e as pedras das esquinas Em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro, Era como se todas as coisas fossem minhas: Quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, Porque ao teu lado Todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, Era no tempo em que o teu corpo era um aquário, Era no tempo em que meus olhos Eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, Uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor, Já se não passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, Tenho a certeza De que todas as coisas estremeciam Só de murmurar o teu nome No silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti Não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas.
A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Desejada há quatrocentos anos, a ponte nasceu tarde — é o que pensam na ilha de Moçambique, alguns dos seus mais lúcidos residentes. Já não é possível deter Nacala. Nacala é um porto propriamente dito, um milagre na costa oriental de África, será infalivelmente a porta do Norte — consideram eles, com algum desgosto. Mas não desistem, mesmo assim; agora, que a ponte existe e já funciona, defendem a ideia do porto de Moçambique e arrancam para uma campanha por uma nova ponte-cais. E se arrancam para uma campanha, aqueles homens da Ilha da Teimosia nunca mais param; teimarão nela, ainda que seja por mais quatrocentos anos — disse-me um deles, com a ironia duma certa descrença. Pois a ponte, como era de prever, já modificou a vida na Ilha, já começou a influir na fisionomia da cidade, já alterou o seu ambiente repousado e tradicionalíssimo. Muitos são os que assistem ao fenómeno com júbilo desvanecido; outros, porém, enfrentam-no com melancolia, saudosamente.
O contra-senso do sonho.
No sonho, ainda que feito realidade, o contra-senso persiste. Assim é que a ponte, inaugurada festivamente no mês passado, com grande multidão a assistir, vivas e discursos, os moleques das marmitas correndo, deslumbrados, com a fome dos patrões atrás dos cavalos nunca vistos que vieram do continente e muitos carros apitando pelas ruas seculares, já dá passagem a camiões que são vistos na carga e descarga desde a Fortaleza ao Crematório dos Baneanes, enquanto um espectacular Ford «Mustang» buzina pela rua dos Arcos, um carro de instrução com os seus dois volantes dá infindas voltas com alunas e alunos, pela Rua 28 de Maio, que vai dar à Rua da Liberdade, onde é a Cadeia, pelo largo de S. Paulo, onde está o palácio dos Capitães-Generais, pela praça Mouzinho de Albuquerque com seu coreto, ou, ainda, pela Ponta da Ilha, lá para o bairro do Areal, até ao Cemitério dos Cristãos. Enquanto isso e o buzinar ferve ecoando pelas ruelas e travessas e os carros pesados esboroam os passeios nas curvas impossíveis, enquanto isso tudo, a gente vai para a Ilha, chegada ao Lumbo de comboio ou de avião, tal qual ia dantes: de barco à vela, o que continua a ser a viagem mais bela que se faz em toda a costa Moçambicana. Logo na gare do caminho de ferro o «capitão» Ali carregou as nossas bagagens antes de lhe respondermos à pergunta «vai para a Ilha?». A caminho da praia formou-se a fila indiana dos seus passageiros, que ele ergueu em seus ombros, um a um, depondo-os cuidadosamente a bordo da lancha «Graças a Deus», que, graças a Deus, tinha uma grande vela não muito esfarrapada e fez uma boa travessia com vento de feição. Além dos repórteres, iam uma velha mulher de vestes garridas à moda da terra, feições nobres e ar respeitável que conversou suavemente com os tripulantes ao longo da hora e meia de navegação; outra mulher mais nova, com a sua filha, pequena e risonha; um rapaz alto, magro, negro retinto, de casaco de coiro e rádio portátil fazendo ouvir, todo o caminho, fados, anúncios, ié-ié, anúncios; além do «capitão» Ali, sentado à ré, com a vara do leme na mão esquerda, havia três marujos divagando sobre os malefícios da ponte. O mar estava doce, de pequeninas ondas, azul e transparente. Era uma serena manhã e o barco embalava-nos enquanto ao longe se estendia, baixa e longuíssima, a ponte que assim estreávamos, alheia a remoques, indiferente aos barcos à vela, que aqui e além pintalgavam de branco a aguarela magnífica daquela travessia.
E agora, Sulemane?
Desembarcados na praia do Celeiro, ao lado da Mesquita Grande, logo pedimos um táxi; e logo nos acudiram os riquexós, que ainda são os táxis da Ilha, embora correndo para o fim próximo. Angustiados, também, com a existência da ponte que lança os automóveis na Ilha, em catadupas, os moços dos riquexós não sabem ainda o que vão fazer quando esse transporte finalmente e naturalmente se for abandonando. Tilintando a sua campainha ou batendo a sua tábua, lá vai Sulemane com ligeireza rebocando o turista para a Pousada. Respeita os sinais de trânsito, recentemente colocados em profusão, sobretudo a indicar vias de sentido único e estacionamento proibido, pois um carro toma a rua toda. Quando cruza com um automóvel, viatura rápida e buzinante — buzina-se muito, para aviso dos peões, ainda por habituar a tamanho tráfego —, Sulemane lança-lhe um olhar de ressentimento, enquanto vai arfando, compassadamente, o seu pequeno motor de 2 tempos, um breve ruído a erguer-se, ténue, sobre o silêncio das rodas de borracha na paz da Ilha. Despachado aquele fortuito freguês, Sulemane descansa o riquexó à sombra, junto dos outros, esperando horas a fio por um cliente nunca mais chegado. Senta-se, limpa o suor da testa e os outros olham-no interrogativamente, expectantes, como se ele pudesse trazer boas novas dos lados da ponte. Os seus olhos perguntam: — E agora, Sulemane?
A ponte é nossa.
Mas a ponte é um dogma. Indiscutível. Mais do que matéria de facto e de concreto, é matéria de fé. Os residentes vão fiscalizá-la, pessoalmente, caminhando até onde está a capela de S. Francisco Xavier e continua o banco de Mouzinho sob a árvore enorme e velhíssima. Ali se liga a Ilha com o Sancul, a 5 quilómetros do Lumbo. Conversando com o guarda, à porta da sua guarita, os citadinos olham o fundo da ponte esperando os carros e alegrando-se quando os avistam. Colaboram na cobrança da portagem e dão explicações aos transeuntes. Um peão paga 1$00 por ida e volta; uma bicicleta, 2$00; uma motorizada, 3$00; uma moto, 5$00; um automóvel, 25$00; um autocarro, 60$00; um camião de carga, 100$00. Peso máximo, 10 toneladas. Todos acham bem, assim é que está certo, é para o progresso da Ilha, a ponte é nossa. Daqui para o futuro, tudo será possível, parece dizerem alguns dos indivíduos com quem se trocam impressões sobre a «ordem do dia». - Agora precisamos dum cais acostável, ao menos para atracarem os navios costeiros — sugere um. - Água, é o que precisamos de arranjar a seguir — opina outro. -Corrente alterna, quanto antes — contrapõe um terceiro. - Um bom hotel, urgentemente — pede alguém. -O comércio reviverá e a Ilha voltará a dominar o distrito — há quem se atreva a profetizar, entre os elogios ao almirante Sarmento Rodrigues. - Vamos desenvolver o turismo — é resolução unânime. Uma coisa é certa: a ponte fez estremecer a velha Ilha de Moçambique e algo de novo e vivificante a acometeu. Naquela relíquia do passado somente se fala de futuro. A estridência dos claxons levanta a poeira de mais de quatrocentos anos na capela de Nossa Senhora do Baluarte, onde dormem navegantes e conquistadores da Índia. A história da Ilha foi cortada ao meio por esta ponte.
Não ponho esperança em mais nada. E se puser Há-de ser ambição tão desmedida Que não me caiba sequer No que me resta de vida. Ambição tão irreal, Tão paranóica, tamanha Como a grandeza de Espanha Com Granada e o Escurial. Porque esta esperança que ponho Em ver-te sair um dia Da verdade para o sonho, É como ser-se feitor Dalguma herdade cansada: À terra, dá-se o melhor, A terra não nos dá nada.
Reinaldo Ferreira,”Poemas” Livro IV, Dispersos, s.l.
...Que culpa terão as ondas Dos movimentos que façam? São os ventos que as impelem E sulcos profundos traçam. Aos ventos quem lhes ordena Que rasguem rugas no mar? São as nuvens inquietas Que os não deixam sossegar. E as nuvens, almas de névoa, Porque não param, coitadas? É que as asas das gaivotas As trazem desafiadas. Mas as asas das gaivotas O cansaço há-de detê-las! Juraram buscar descanso Nas pupilas das estrelas. E como as estrelas estão altas E não tombam nem se alcançam, As asas das pobrezinhas Baldamente se cansam Baldamente se cansam, Baldamente palpitam! As nuvens, por fatalismo, Logo com elas se agitam; Os impulsos que elas dão Arrastam as ventanias; As vagas arfam nos mares Em macabras fantasias Assim as almas inquietas Prisioneiras de ansiedades, Mal que se erguem da terra, Naufragam nas tempestades!
De português tenho a nostalgia lírica de coisas passadistas, de uma infância amortalhada entre loucos girassóis e folguedos; a ardência árabe dos olhos, o pendor para os extremos: da lágrima pronta à incandescência súbita das palavras contundentes, do riso claro à angústia mais amarga.
De português a costela macabra, a alma enquistada de fado, resistente a todas as ablações de ordem cultural e o saber que o tinto, melhor que o branco, há-de atestar a taça na ortodoxia de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.
De português, o olhinho malandro, concupiscente e pluriracial, lesto na mirada ao seio entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega; a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios, o prazer saboroso e enternecida da má-língua.
De suíço tenho, herdados de meu bisavô, um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.
Rui Knopfli, in "Mangas verdes com sal", 1972, 2ª Ed., LM, Minerva Central
Dos prazeres no céu Que Mahomet promete, Não trocava sete Só por este meu. Ver, enquanto ceio, Teu olhar, Suzette, Como se reflecte No meu copo cheio. Assim, com certeza, Por mais que a desdenhe, Na vida há beleza Enquanto há champagne.
Reinaldo Ferreira,”Poemas” Livro IV, Dispersos, s.l.
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli