Auto-Retrato
De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes,
do riso claro à angústia mais amarga.
De português a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.
De português, o olhinho malandro, concupiscente
e pluriracial, lesto na mirada ao seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecida da má-língua.
De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.
Rui Knopfli, in "Mangas verdes com sal", 1972, 2ª Ed., LM, Minerva Central
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