Summertime
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli
Na vida somos iguais
Às peças que no xadrez
Valem o menos e o mais,
Segundo o acaso que a fez.
Do mesmo cepo nascer
Para as batalhas pensadas,
Aos mais, peões de perder,
A raros, ficções coroadas.
Mas, findo o jogo, receio
Que, extintas as convenções,
Durma a rainha no meio
Dos mal nascidos peões.
Reinaldo Ferreira, “Poemas”, Livro I – Um voo cego a nada
Tenho o meu pequeno tratado de sociologia,
uma sociologia de horizontes modestos.
Ponho-me a remorder
continentes, povos, hábitos e costumes,
mas a minha sociologia não
passa disto,
uma sociologia de esquinas.
Da malta e das esquinas,
e tudo muito limitado.
Vem antes de mim
e irá para além um pedaço.
Antes, era o grupo do Jacaré,
a geração que me precedeu.
Vinham. como sempre, após os estudos,
por volta das cinco da tarde,
um a um,
sentar-se na dobra do passeio, à esquina,
alguns inda vinham da geração anterior.
Agora outro grupo, outra esquina,
outros nomes (alguns ainda se sentaram
à minha beira).
As coisas mudam muito,
mas nesta essencialidade
a malta permanece.
E, ainda,
com a brisa da tarde a cair,
se vêm sentar na borda do passeio,
à esquina.
Eu aqui mordo-me de lembranças
e saudades,
faço esta sociologia
e nunca mais, com a brisa da tarde a cair,
me irei sentar na borda do passeio,
à esquina...
Rui Knopfli
Em pequenina,
Não me lembro a que brincava.
Certamente ao Amor de meu Pai e minha Mãe,
Com gracejos, risos dobrados, mimos, beijos e abraços.
Em pequena,
Brincava à macaca, às escondidas, à bola, ao berlinde,
Às casinhas, ao faz de conta ,
E a tantas coisas mais,
Com contos de bruxas e fadas
Reinos, príncipes e princesas,
Risos, gargalhadas, gritos, algazarra,
Zangas, discussões, bofetões, correrias e tropeções.
Na adolescência,
Brincava ao aprender, ao saber e aos namorados,
Com contos de heróis e heroínas,
Olhares, piscadelas, rubores, sorrisinhos,
Cochichos, segredinhos,
Promessas, beijos, abraços,
E tantas coisas mais!
Na juventude,
Brincava às verdades que me ensinaram,
Com amor, força, sonhos, ilusões,
Lutas, perdas, conquistas,
Luz no rosto, palavras de todos os sons musicais,
E tantas coisas mais!
Eu tinha Vida.
O brilho foi-se apagando,
A musica,
Cada vez mais baixo a ouvia.
E eu que brincava,
Estava quase adormecida, mas prosseguia.
Tive medo de caminhar no sono, no nada e no silêncio.
Olhei para trás e recordei,
Como tinha sido bom brincar com tudo o que brinquei.
Acordei e fiz jura de continuar a brincar.
Hoje,
Não brinco ao faz de conta.
Brinco de outro jeito, a muito do que brinquei,
Às verdades que criei,
Ao nada, ao silêncio, a mim e à Vida,
Com tudo o que brinquei e tantas coisas que aprendi.
Quero continuar a brincar a tantas coisas mais
Com tudo o que brinquei e o que ainda não sei.
“Autor Com nome”
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes,
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
António Gedeão