Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Linhas cruzadas




Ai de mim!

Que não pedi p'ra nascer

E sou forçado a viver!



A Natureza espreitava

O desejo de meus pais.

E foi pedir ao destino

Que lhes cruzasse os caminhos

Que eles haviam de seguir.

Ah! Pobre mãe!

Antes tivesses nascido

Toda crivada de espinhos,

Estéril como cardo seco!

Mas tinhas olhos de moira:

Um lírio branco murchou

E o teu ventre concebeu

Este farrapo que eu sou.



Duas rectas que se cruzam,

Eis um ponto.

Esse ponto, em movimento,

Há-de ser recta também.

Essa recta e outra recta

Hão-de formar outro ponto,

Novo ponto, nova recta,

E sempre, assim sem remédio.



Eu sou um ponto nascido

De duas vidas cruzadas:

Trouxe comigo um impulso

Que me deu a Natureza

Para seguir um caminho

E a trajectória marcada.

O que me espera? Não sei.

Apenas sei que caminho,

Para um caminho de fel,

Para a certeza do Nada.

Comecei, era menino,

Sou cansado caminhante,

Serei velho peregrino,

E o Nada sempre distante.



Ai de mim!

Que não pedi p'ra nascer

E sou forçado a viver!



Reinaldo Ferreira

sábado, 27 de maio de 2006

Quadrilha



João amava Teresa

que amava Raimundo

que amava Maria

que amava Joaquim

que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos,

Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre,

Maria ficou para tia.

Joaquim se suicidou

e Lili casou com J.Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.



Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 25 de maio de 2006

A Ilha Dourada



A fortaleza mergulha no mar

os cansados flancos

e sonha com impossíveis

naves moiras.

Tudo mais são ruas prisioneiras

e casas velhas a mirar o tédio.

As gentes calam na voz

uma vontade antiga de lágrimas

e um riquexó de sono

desce a Travessa da Amizade

Em pleno dia claro

vejo-te adormecer na distância,

Ilha de Moçambique,

e faço-te estes versos

de sal e esquecimento.



Rui Knopfli, In "Memória Consentida"

sábado, 20 de maio de 2006

Os Africanos Peitos Caridosos


Igreja da Cabaceira (Mossuril), onde está sepultado o poeta

A Moçambique aqui vim deportado.
Descoberta a cabeça ao sol ardente;
Trouxe por irrisão duro castigo

Ante a africana, pia, boa gente.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!
Não esmolei, aqui não se mendiga;
Os africanos peitos caridosos
Antes que a mão infeliz lhe estenda,
A socorrê-lo correm pressurosos.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!

Tomás António de Gonzaga




quinta-feira, 11 de maio de 2006

Aeroporto



É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.


Rui Knopfli