Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Linhas cruzadas




Ai de mim!

Que não pedi p'ra nascer

E sou forçado a viver!



A Natureza espreitava

O desejo de meus pais.

E foi pedir ao destino

Que lhes cruzasse os caminhos

Que eles haviam de seguir.

Ah! Pobre mãe!

Antes tivesses nascido

Toda crivada de espinhos,

Estéril como cardo seco!

Mas tinhas olhos de moira:

Um lírio branco murchou

E o teu ventre concebeu

Este farrapo que eu sou.



Duas rectas que se cruzam,

Eis um ponto.

Esse ponto, em movimento,

Há-de ser recta também.

Essa recta e outra recta

Hão-de formar outro ponto,

Novo ponto, nova recta,

E sempre, assim sem remédio.



Eu sou um ponto nascido

De duas vidas cruzadas:

Trouxe comigo um impulso

Que me deu a Natureza

Para seguir um caminho

E a trajectória marcada.

O que me espera? Não sei.

Apenas sei que caminho,

Para um caminho de fel,

Para a certeza do Nada.

Comecei, era menino,

Sou cansado caminhante,

Serei velho peregrino,

E o Nada sempre distante.



Ai de mim!

Que não pedi p'ra nascer

E sou forçado a viver!



Reinaldo Ferreira