" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli
terça-feira, 30 de junho de 2009
Na morte de Reinaldo Ferreira (50 anos)
Recusando a simetria académica dum frio céu azul, desce por si à desarmonia incandescente dos infernos, mergulhando até às ilhargas no lodo carnal das paixões que arrastou em vida. Desce puro, desce sereno, na electricidade estática do olhar, no amarelo dos cabelos em desalinho, - uma enorme flor lilás abrindo-lhe o fundo, magro peito. Desce, o menestrel de tontas melodias, aos panoramas de uma infância adulta. O que na vida repartiu seu poema por alados guardanapos de papel, o criador de sonhos logo perdidos na berma dos caminhos, o mago que pressentia o segredo da beleza perene, recusa a estática arquitectura dos parténones celestes e desce, simples, sangrando, sereno, à angústia vulcânica dos infernos torturados, onde se mira como num espelho.
Rui Knopfli
Reinaldo Ferreira, foto de Rui Knopfli
Reinaldo Ferreira
Antes de mim, já outros o fizeram. Dominadores de mundos circunscritos, só se submetem aos que consideram ser do domínio fulvo dos seus mitos.
Se vivem, é para o desnudamento da íntima direcção que em si arrua os gelos vindos de um cabo do alento duma promessa a uma verdade sua.
Antes de mim, já outros o fizeram. Com o cinzeiro cheio, amanheceram ante a escarpa do olhar dentro de si.
Na mesa do café, tardando à mesa, à curva do seu fardo de beleza, como à do meu destino, obedeci
Sebastião Alba
Timbre
EU,
Morreu.
Só há ideal
No plural.
Tecidos
Como os fios que há nos linhos,
Parecidos
Entre nós como dois olhos,
Somos do tempo de viver aos molhos
Para morrer sózinhos.
Reinaldo Ferreira, poema autográfico, in "Poemas", Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960.
Acordes gastos De velhos cantos Doutras deidades, Riem, nefastos Das novidades. Zombam?... Quem sabe Qual o sentido, Oculto ou expresso, Que tem a Esfinge? Ai quantas vezes O riso rido É dor que finge Ter-se sorrido; Ou azedume De ser excedido. Talvez apenas Serenidade; Olhos que fitem, Desnecessários, A eternidade. Nós é que, toscos De ter sentido Sua atentatória Supremacia, Nos esquecemos Que os Deuses mortos Não têm memória Nem simpatia.
.................................................................................... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Depois de amanhã serei outro, A minha vida triunfar-se-á, Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático Serão convocadas por um edital... Mas por um edital de amanhã... Hoje quero dormir, redigirei amanhã... Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância? Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo... Antes, não... Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. Só depois de amanhã... Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã... O porvir... Sim, o porvir...
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli