Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Quanto mistério na semente

LM acacias

Quanto mistério na semente

Que ergue ao sol o pulmão de uma folha;

Quanto mistério em mim, que a vejo;

E quanto, quanto mais mistério em mim,

Que vejo nisto um mistério!

Reinaldo Ferreira, “Poemas”, Livro IV – Dispersos

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Independência



Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.

Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.

Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.

Recuso-me à inocência e ao pecado
como ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo. Ó Terra dividida!

Jorge de Sena, “Poesia-I”, Livraria Moraes Editora, Lisboa, 1961

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

A emoção é como um pássaro



A emoção é como um pássaro:
Quando se prende já não canta.
Mas se a gente a liberta,
Qualquer janela aberta
Lhe serve para fugir.
O poeta é aquele que numa praça
S. Marcos de Veneza transcendente,
E de todas as praças, praça ainda,
Aguarda na manhã que se insinua
Ou na tarde que finda
O voo que há-de vir.
Ele estende a mão,
Abre-a espalmada
Ao céu,
Que à anunciação de tudo ou nada
A emoção virá ou não
- Sem emoção, toda a poesia é nada –
Fiel à Anunciação que está marcada
Na sua condição.

Reinaldo Ferreira, ”Poemas”, Livro I – Um voo cego a nada

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

El Rei Dom Manuel II

El Rei Dom Manuel II - "O Patriota"





Pavilhão dos Reis de Portugal

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Sputnik






BOMBAS E SATÉLITES

Mais do que nunca e progressivamente o mundo é da publicidade. A guerra de nervos, a guerra fria e todas essas modalidades novas de guerra, sem espadeiradas e sem tiros, guerras de gerações covardes ou escaldadas e escarmentadas - o que, afinal, vem a dar no mesmo - não são mais do que gigantescas lutas de publicidade. Publicidade refinada, em colossal escala e projectada na política internacional. Coca-Cola, Pepsi-Cola. Garrafa pequena, garrafa média, garrafa-família. Bomba atómica, teleguiados, satélite artificial.
É só isso. As grandes potências a disputarem as atenções mundiais. As vedetas invejosas, ciumentas e, no fundo, preocupadas com a bilheteira… Com a bilheteira e com os contratos futuros. Os teatros, o público e os mercados. Está em jogo o poder de gastar dinheiro, a capacidade de aguentar prejuízos, para arrebentar com os concorrentes. Tudo isto representado, na política, por vontade de domínio, interesse de controlar, necessidade de permanecer no lugar de protector, guarita da sentinela.
Diferem os meios e as finalidades, no seu conteúdo ideológico, estas e aquelas discutíveis e que forçam o mundo a escolher, quando pode, como pôde Kravchenko, o que escolheu a liberdade.
De resto, luta publicitária e busca de mercados, para a indústria ou para a doutrina. O mundo de hoje é da publicidade.

*

E se não, vejamos como se afobam, como se multiplicam em informações pormenorizadas e constantes, acompanhando a trajectória do satélite, à volta desta saloiíssima Terra, a Agência Tass e a Rádio Moscovo! É a Voz do Comércio correndo a cidade. Só com a diferença de que toda a gente a ouve e entende. Por outro lado, vem um almirante americano e afirma ser aquilo um pedaço de ferro que qualquer país podia atirar ao ar… Mas a bolinha incandescente vai passando e as populações do mundo tentam, disciplinadamente, descortiná-la e, quer a vejam, quer não, dizem que vai ali aquele aparelho inventado pelos russos, o primeiro satélite artificial da Terra, que foi lançado pelos russos. A maior bomba nuclear foi experimentada pelos americanos.
Pelos russos, pelos americanos. Ora, isto é luta, é publicidade. Coca-Cola, Pepsi-Cola.

Gouveia Lemos

Coluna Mesa Redonda
In: “Notícias da Tarde”, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1639, de 09 de Outubro de 1957, p. 1




SATÉLITES E PROJÉCTEIS

Vejam o aspecto, dia a dia mais acentuado, que vai tomando essa luta científica, pela conquista do espaço. E digam se é ou não é competição publicitária. O satélite anda às voltas à Terra, como um cartaz e nas bocas do mundo como um slogan. Ainda não se desfez, nem como objecto nem como assunto e já se prepara a reacção, que se prevê de monta e que há-de atrair os nossos olhos arregalados para o outro lado do mapa.
A verdade é que, embora seja publicidade caríssima – e quem paga é sempre o público – ela vai-nos garantindo entretenimento e paz. Se Deus quiser, não dará mais nada.

Gouveia Lemos

Coluna Mesa Redonda
In: “Notícias da Tarde”, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1645, 16 de Outubro de 1957, p. 1

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Poema enjoadinho



Filhos... Filhos?

Melhor não tê-los!

Mas se não os temos

Como sabê-lo?

Se não os temos

Que de consulta

Quanto silêncio

Como os queremos!

Banho de mar

Diz que é um porrete...

Cônjuge voa

Transpõe o espaço

Engole água

Fica salgada

Se iodifica

Depois, que boa

Que morenaço

Que a esposa fica!

Resultado: filho.

E então começa

A aporrinhação:

Cocô está branco

Cocô está preto

Bebe amoníaco

Comeu botão.

Filhos? Filhos

Melhor não tê-los

Noites de insônia

Cãs prematuras

Prantos convulsos

Meu Deus, salvai-o!

Filhos são o demo

Melhor não tê-los...

Mas se não os temos

Como sabê-los?

Como saber

Que macieza

Nos seus cabelos

Que cheiro morno

Na sua carne

Que gosto doce

Na sua boca!

Chupam gilete

Bebem shampoo

Ateiam fogo

No quarteirão

Porém, que coisa

Que coisa louca

Que coisa linda

Que os filhos são!

Vinícius de Moraes