" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli
segunda-feira, 27 de novembro de 2006
Esboço para a invenção de uma poetisa
De que me serviram as tranças, Minha mãe, com que sonhavas Conservar-me a inocência Que eu não tinha? Para quê a vigilância Das leituras que eu fizesse Que eu fizesse e que eu faria No prazer entrecortado Do pecado vigiado? Que é do marido perfeito, Feito dos restos do outro Que sonhaste E não achaste E julgaste que me estava reservado? Onde estão a segurança, O sossego, a plenitude Da mulher que fabricaste Como quem põe a pousada Na paisagem da altitude? De que serviu tanta hora A guiar-me, A desviar-me, Senão também, Minha mãe! Para que eu misto de esperança E, como tu, de vingança Não deixasse Que a filha da minha carne As suas tranças cortasse, Sua leitura escolhesse, E com firmeza afastasse O marido que eu lhe desse.
Tenho uma flor. Pálida. Não uma flor difícil, não uma rosa multicor, complicada, de um jardim secreto. Não uma flor agreste, uma flor de micaia, flor da minha terra, que sou desenraizado. Uma flor qualquer que me inspire e me qualifique. E adoce este tempo que habito. Simples, pálida, de haste longa e pétalas simétricas. Talvez um malmequer, talvez algo bem mais simples. Sem cheiro, sem cor, sem importância alguma. Uma flor. Uma flor de plástico.
As acácias já se incendiaram de vermelho e o zumbido das cigarras enxameia obsidiante a manhã de Dezembro. A terra exala, em haustos longos, o aguaceiro da madrugada. Ao longe, no extremo distante da caixa
de areia, o monhé das cobras enrola a esteira e leva o cesto à cabeça, cumprido o papel exacto que lhe coube e executou com paciente sageza hindu. Dura um instante no trémulo contraluz
do lume a que se acolhe, antes da sombra derradeira. Assim, os comparsas convocados para esta comédia a abandonam, verso a verso, consignando-a ao olvido e à erva daninha que, persistente, a cobrirá
irremediavelmente. O encenador faz a vénia da praxe e, porque aplausos lhe não são devidos, esgueira-se pelo anonimato da esquerda alta. É Dezembro a encurtar o tempo, o pouco que nos sobra.
Polpas macias De dedos leves Cintados por ametistas, São organistas Dos meus ditongos Longos E breves
Como contraste, Para desgaste Dos sons, veludo sobre cetim, Vogais gritantes, Tamborilantes, Decapitantes, Sons oxidantes Como em clarim
E o taciturno E esquivo Motivo Todo nocturno, Sonha a palavra Com arabescos Da sua lavra.
Sonha a palavra, Detesta a frase, Sabe o encanto Do que é só quase.
Por isso tende Mas não atinge, Porque transcende Para a imagem Visualizada Duma paisagem Subjectivada Que nos dilata Mas nos compreende, Onde gravitam Coisas errantes, Em translacções De percepções Centrifugantes.
E são imensas Por não sofrerem Nem o tamanho Nem dimensão; E são intensas, Porque não passam Duma evasão Das inconsciências Que me contenho.
Tudo incoerências Coisificadas; Prelúdios, restos, Rastos de gestos Que nunca foram Mais que eminências Balbuciadas
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces, Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: “vem por aqui”! Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos meus olhos, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali …
A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos …
Se ao que busco saber nenhum de vós responde, Por que me repetis: “vem por aqui”? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí …
Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?… Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos …
Ide! tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátrias, tendes tectos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios. Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios … Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: “Vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou … Não sei por onde vou, Não sei para onde vou, -Sei que não vou por aí!
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli