Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Cântico Negro



“Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali …


A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos …


Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí …


Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos …


Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios …
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.



Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “Vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou …
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí!


José Régio

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Belissimo !!!!!!!!!!!
Será que alguém sabe bem,
por onde vai?
para onde vai?
porque vai?
Será que por vezes não vamos por onde julgamos não ir?
Parabéns
MD

sexta-feira, 10 de novembro de 2006 às 00:08:00 WET  
Anonymous Anónimo said...

Parabéns?!!!
Não sou eu que os mereço.
Há quem saiba, pelo menos o percurso de vida parece indicar que sim...
Eu, que não sei por onde vou,nem para onde vou, recuso sempre ir por aí...
Mas, isso sou eu, que não cresci...
Beijo,
F

sábado, 11 de novembro de 2006 às 19:19:00 WET  
Anonymous Anónimo said...

Todos crescemos, mesmo os que dizem ou pensam que não ...... O tempo que passa encarrega-se disso.
Será que os percursos de vida são o retrato do caminhante?
Por vezes os que mais pensam que recusam "ir por aí" são os que vão "por aí".
Que grande trocadilho!!!
Beijo
MD

terça-feira, 21 de novembro de 2006 às 23:25:00 WET  

Enviar um comentário

<< Home