" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli
quarta-feira, 30 de agosto de 2006
Momento de Poesia
Anoitecia quando eu passei Na doca dos pescadores. Uma lanterna luzia à ré Duma traineira sem nome. A mancha dos mestres humildes Sem nenhuma galhardia Riscava de carvão A cinza do anoitecer. E parando-se a olhar —Olhando somente o mar— Eu parado não sabia Se os homens são bons ou maus. Passou um carro a zunir E lá dentro vozes riam. Depois fiquei só, mais a noite Mais os barcos e a lanterna, Submersos em maresia. Um vulto, de repente Roubou a luz amarela Àquele nocturno palpável, —Oh! João! Já vais?… Da terra ninguém respondeu. Só se ouviu de novo o mar. E enquanto ali fiquei —Preso ao mar e libertado— Por mais que eu procurasse, Nenhuma ideia encontrei —Nada que me lembrasse Problemas sociais. As palmeiras da avenida Com o vento recitaram Umas frases sem conceito. E nada mais.
Tome-se um homem, Feito de nada, como nós, E em tamanho natural. Embeba-se-lhe a carne, Lentamente, Duma certeza aguda, irracional, Intensa como o ódio ou como a fome. Depois, perto do fim, Agite-se um pendão E toque-se um clarim.
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli