" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli
domingo, 31 de dezembro de 2006
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido (mal vivido ou talvez sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens?passa telegramas?). Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar de arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto da esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.
Desde a névoa da manhã à névoa do outro dia. Desde a quentura do ventre à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram. Corolas que se desdobram. Corpos que em sangue soçobram. Vidas qu'a amar se consagram. Sob a cúpula sombria das mãos que pedem vingança. Sob o arco da aliança da celeste alegoria.
Tudo foi emprestado e alheio Para que Deus nascesse conforme as Escrituras: A gruta, que os presépios embelezam, - Ou talvez um estábulo? - Ou talvez o ventre autêntico da mãe? A burra e a vaca, José, que era o pai cómodo, E a mãe, que era o empréstimo supremo, O recurso, a verdade E a necessidade Para que Deus nascesse entre os homens, Mais do que Deus, Um Homem. Havia os magos com presentes deslocados, O astro dos sinais, A voz, o anjo, os pastores e a frase Que nos presépios fabricados Fala da paz, dos homens e da boa-vontade. Havia a noite e nós, Filhos de pai e mãe, Nascidos antes e depois à espera de que Deus viesse, Fruto d'A que não teve marido neste mundo Para que o filho deslizasse sem pecado. E havia Herodes, Para que não fosse fácil O que era inevitável. E houvesse drama. Ora bem. Entre a burra e a vaca, Dentro do hálito tépido das bestas, Sobre as palhas E ao nível das tetas, O menino jazia Nascido, Que é como quem diz cumprido Da promessa que havia. José, Os magos e os pastores Tinham a sua fé; A estrela tinha o seu ofício de ser estrela; A noite e as bestas tinham a sua inconsciência, Que é tudo, Porque tudo e nada são a mesma coisa; O Menino tinha o mistério de ser menino E já Deus; Ela, Ela tinha a miséria de ser mãe E só mãe. Ela é o Natal. Ora bem. Não falemos de Herodes, nem dos magos, nem dos pastores, Nem sequer de José, Do amável, do amoroso José Que nos enternece E discreto desaparece Pela esquerda baixa Do primeiro quadro da tragédia De que somos o coro - E também a tragédia. Mas falemos d'Ele, Que Ele é Ele, Mesmo quando se faz pequenino Para ter o nosso tamanho. Não falemos da noite, Que é um pouco mais que tudo isso, - E menos do que a mãe, De quem falemos. Ora bem. Ela ali estava para ser pintada. Para ser pintada na vista do conjunto Que é o Natal, Comparsa dos presépios que hão-de vir, Entre arraiais e foguetes E estrelas de papel. Ela ali estava para ser pintada Na fuga para o Egipto, Ao trote gracioso do burrito, Sem vaca, só com José e o deserto e as escrituras, Que mandam mais que Herodes E todos os seus bigodes. Ela ali estava para ser pintada. Para ser pintada – pouco e bem – Sem o burrito, só com Sant'Ana e S. José No breve engano de ser só mãe Dum filho que fosse só filho. Ela ali estava para ser pintada No alarme de Jesus entre os doutores. Ela ali estava p'ra não ser pintada Depois que Jesus fez trinta, Antes dos trinta e três (Disseram trinta doutores: - Diga trinta e três. Ele disse. Ele disse e morreu Sem sofrer dos pulmões). Ela ali estava para ser pintada E no zénite de Jesus ser Jesus, Depois dos trinta, Quando Jesus Fez Trinta e três, Ela ressuscitou pintura ao pé da cruz. Ora bem. A cruz que Ele trazia, Mal lhe pesava. Ele esperava. Ele salvava. Ele descia E por isso subia. Ela era mulher, era mãe – e Sabia. A sua cruz Era Jesus. O seu inferno Era ser mãe do Eterno Que havia de sangrar E morrer Pelo caminho. Por isso é que Ela mal se vê no palheiro, Que é como quem diz, no estábulo. Não é a estrela que A deslustra (O Universo e todos os seus astros Não valem o que Ela é); Não são os magos que A repelem Para o canto, de não ser rainha, Porque Ela o é dos reinos que eles buscavam; Não é José que A excede, porque José é José, E isso lhe basta sem ser bastante; Não é o Filho que A tolda, Porque Ela é a Mãe. Ora bem. É ser a Mãe. É ver que o Seu menino Não é apenas menino, Mas a dose anunciada De Homem e Deus; A ponte que tem de ser pisada Para que haja estrada Para os céus; É o ser-lhe filho e ser-lhe pai, O filho que Ela estremece Vivo e já morto, Porque o Pai quer e Ela obedece. Irmãos em Cristo! Irmãos do mesmo pai, Quem quer que seja o Cristo Que buscais. Esta é a Sua hora! A Sua – e a nossa. Ela é o Natal. Avé-Maria. Ora bem.
Reinaldo Ferreira “Poemas” Livro III Poemas de Natal e da Paixão de Cristo
Filipe II tinha um colar de oiro tinha um colar de oiro com pedras rubis. Cingia a cintura com cinto de coiro, com fivela de oiro, olho de perdiz
Comia num prato de prata lavrada girafa trufada, rissóis de serpente. O copo era um gomo que em flor desabrocha, de cristal de rocha do mais transparente.
Andava nas salas forradas de Arrás, com panos por cima, pela frente e por trás. Tapetes flamengos, combates de galos, alões e podengos, falcões e cavalos.
Dormia na cama de prata maciça com dossel de lhama de franja roliça. Na mesa do canto vermelho damasco a tíbia de um santo guardada num frasco.
Foi dono da terra, foi senhor do mundo, nada lhe faltava, Filipe Segundo. Tinha oiro e prata, pedras nunca vistas, safira, topázios, rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo sem peso nem conta, bragas de veludo, peliças de lontra. Um homem tão grande tem tudo o que quer. O que ele não tinha era um fecho éclair.
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli