Um Voo Cego A Nada...
" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca
incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se
sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca,
ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e
imunizados. A mínima exposição a determinadas
circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis
recorrências e acabamos por arder na altíssima febre
de uma recidiva sem regresso nem apelo".
Rui Knopfli
À Paris
O meu Paris é Johannesburg,
um Paris certamente menos luz,
mais barato e provinciano.
Mas Johannesburg lembra-me o Paris
que não conheço: o mesmo movimento
endemoninhado, as luvas brancas
do polícia sinaleiro, o brilho das montras,
a cor da moda, os mesmos amorosos
que se beijam sem pudor nos bancos
das áleas ensolaradas, o Sena
que não há e a Torre Eiffel
que também não
À noite janto no Montparnasse
de Hilbrow, que é o Quartier Latin
do sítio e olho essas mulheres
excêntricas e belíssimas
de pullover e slacks helanca.
Olho também esses efebos de pálpebras
cendradas, com os ademanes e o ar triste
de quem vive na perplexidade dos sexos.
Depois do turkish coffee meto-me
até ao Cul de Sac e fico-me
a ouvir o sax maravilhado
de Kippie Moeketsi. O jazz, sim,
é genuíno e tem um bite
todo local.
Aqui ninguém sabe quem sou,
aqui a minha importância é zero.
Em Paris também.
Rui Knopfli, In "Máquina de Areia"
José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
Carlos Drummond de Andrade
Epitáfio a um capricho morto
Amei
Não QUEM busquei,
Mas o que achei.
O mesmo acaso
Que nos cruzou,
Nos separou.
Assim
O fim
Estava em mim,
Túmulo e berço
Do sempre engano
Par'onde vou.
Reinaldo Ferreira, “Poemas” Livro IV-Dispersos.
É pela tarde, quando a luz esmorece
É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colmeias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para as dores alheias.
Um que, impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que se cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.
Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele, e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.
Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.
Reinaldo Ferreira,”Poemas” Livro I - Um voo cego a nada