Ser-se imigrante e como*
§ 01 «Antes de mais, e no que direi, não quero que ninguém veja ou imagine que me separo ou distingo dos outros imigrantes (nunca nos esqueçamos de que para a pátria ingrata que se congratula de nos ver pelas costas, somos emigrantes com e, já no latim do ex que nos punha fora; e de que passamos a ter i de estar in, já nos latins das nossas origens linguísticas, no país que nos acolhe, ou em que nos obstinamos em sobreviver), com pedantarias da cultura ou da categoria universitária. De modo algum, aqui, nos Estados Unidos, eu e a minha família somos imigrantes como quaisquer outros, excepção feita, é claro, daqueles dos meus filhos que já adoptaram a nacionalidade norte-americana, ou de um neto meu que é americano-nato. Cumpre-me explicar um curioso aspecto no que me diz respeito. Depois que, em 1958, emigrei de Portugal para o Brasil (de onde em 1965 emigrei para os Estados Unidos), a minha intenção, uma vez que Salazar parecia decidido a morrer depois de mim, e que eu tinha de ter vida fixa e garantida no Brasil de onde não contava que jamais sairia (e de 1959 a 1964 vivi nele os anos comoventes e inebriantes, com “bagunça” e tudo, da real democracia, ou, se quiserem, das garantias e liberdades dos governos dos Presidentes Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, um milagre para um democrata esquerdizante como eu que tinha seis anos ao tempo da revolução do 28 de Maio), era ficar nesse Brasil que me acolhera e me nomeara professor catedrático (o meu doutoramento e a minha Livre-Docência, o brasileiro título acima daquele, defendi-os e ganhei-os lá, depois de ter ficado e também ao Brasil os devo). Assim, em 1963, adquiri a nacionalidade brasileira, quando já em 1961 e em 1962 havia sido pai de uma filha e de um filho que são brasileiros-natos. Emigrando de lá para os Estados Unidos, descobri um grande mistério migratório: os States não reconhecem, para tais efeitos, segundas e adquiridas nacionalidades, pelo que, se viajo com um passaporte brasileiro, fui admitido aqui como o português de nascimento que era e que fui por mais de quarenta anos da minha vida (sendo que sou há quarenta anos, e nunca deixei de ser, um escritor da literatura portuguesa). Paralelamente, aqui, e em recente desenvolvimento, como português ou ibérico, escapei à designação “latino” (que, tecnicamente, portugueses, espanhóis, franceses, italianos, parte da Suíça, romenos, e mais família latino-americana, todos somos) que agora serve para distinguir racicamente (se é que não racisticamente) os Latino-americanos. Pelo que sou pai de dois desses seres inferiores, filhos de pais portugueses, mas nascidos no Brasil... e dos quais é de desconfiar que, por efeito do clima, sejam “escurinhos”, como por delicadeza se diz lá nesse Brasil! Reatemos.
§ 02 Por vezes, para os portugueses (e sobretudo pelos próprios portugueses), tem sido usado o termo grego diáspora, aplicado à colossal dispersão de seres humanos de origem portuguesa pelo universo ao longo dos séculos, sem dúvida numa proporção que poucos países do mundo poderão apresentar. Mas, quanto a mim, o uso deste termo deve ser feito com certas qualificações, e tendo em mente, pelo que tem a ver com a Península Ibérica, a que foi primeiro aplicado aquele helenismo. Com efeito, diáspora corresponde à expulsão dos judeus da Palestina, e à sua forçada dispersão pelo mundo, quando, no ano 70 da nossa era, o imperador romano Tito destruiu a Jerusalém que se rebelara contra a dominação de Roma. Enorme parte desses judeus terá tomado o caminho da nossa Ibéria, aonde por séculos constituíram a aristocracia do judaísmo, os sefarditas, por oposição aos judeus dispersos nas partes orientais da Europa ou no Oriente Próximo, os ashkenazis (esta profunda divisão ainda hoje subsiste no judaísmo, e são os últimos quem numericamente domina nos Estados Unidos e em Israel). Se pensarmos que os judeus da Ibéria tiveram, apesar de todas as restrições, catorze séculos de poderem misturar-se com a outra gente, e que, depois das Inquisições e das conversões forçadas ao catolicismo que criou os cristãos-novos (dos quais saíram algumas das maiores figuras das Espanhas católicas e canonizadas, todos com avós penitenciados pela Inquisição, como Santa Teresa de Jesus ou S. João da Cruz, grandes escritores de Doutores da Igreja, do mesmo modo que saíram famílias que judaizaram às escondidas até que os fins do século XVIII as libertaram, sendo que o brasileiro António José da Silva, o grande autor lisboeta de comédias, foi dos últimos a não escapar à fogueira), tiveram mais cinco séculos para continuarem mais livremente a mistura, nenhum de nós pode cuspir para o ar – até a família real portuguesa (e outras mais) tinha costela judaica por mais de um lado da árvore genealógica secreta. Portanto, diáspora, aplicado à gente portuguesa é como um lembrete do que haja de sangue judaico em nós (e saiba-se que, na Idade Média, foi na Península Ibérica que a cultura hebraica conheceu de novo uma era de magnificente esplendor). Metaforicamente, sem esquecer o acima dito, poderíamos fazer um paralelo entre o que aconteceu naquele distante ano 70 em que o ilustre Tito dispersou os judeus, e o que tem acontecido durante mais de oito séculos a todos nós, dispersos por sucessivas gerações de governantes portugueses, desde a fundação de um país que sempre desejou viver das rendas dos outros (e, por desgraças de vária ordem, ganhou a liberdade, mas não uma mudança dessa política). Nesse sentido, temos tido uma diáspora ao longo do tempo, como uma vez os judeus a tiveram no espaço (não contando as vezes, coitados, em que a bondade e a caridade cristãs os fizeram andar de mala aviada).
§ 03 Há, porém, e no nosso século, uma diáspora que não tivemos, e de que outros países sofreram, com tremendos ganhos para a expansão e prestígio das suas culturas. Não quero referir-me à larga saída de gente da Rússia, escapando-se à Revolução de 1917 e à guerra civil que se lhe seguiu (e aos ataques das diversas potências associadas aos russos ditos “brancos”). Essa emigração atirou, para a Europa Ocidental e para as Américas, dúzias de príncipes e grã-duquesas de verdade ou falsos, que acabaram abrindo restaurantes folclóricos que ainda hoje duram com danças e muitos otchi tchernia cantados em rebolanço dos mesmos olhos, ao som de orquestras mais ciganas que outra coisa. Mas, com raras excepções, não espalhou pelo mundo a inteligência russa em quantidades de especial distinção, e mesmo produziu, para consumo dos pedantes dos Departamentos de Inglês das universidades norte-americanas e quejandos analfabetos em qualquer língua, os Nabokovs das Lolitas e de outras obras muito mais retorcidas, só mesmo para gente convencida de ser inteligente, e, é claro, admiradora de um russo que não era “de lá” e até fazia o favor de escrever em inglês. Não me refiro a esta mascarada trágica de que emergem algumas figuras muito raras de escritores eminentes Ivan Bunin, o filósofo Chestov, etc., e críticos formalistas que vieram a ser pais do estruturalismo contemporâneo. Quero referir-me ao caso da Alemanha e ao de Espanha. O avanço aterrador do poder nazi na Alemanha, a subida de Hitler ao poder, a sua invasão da Áustria, produziram uma admirável diáspora: porque não foram só judeus de profissões variadas, intelectuais muitos deles, quem se escapou – foram também numerosos liberais e esquerdistas que abandonaram as terras germânicas espontaneamente, seguindo em protesto o caminho do exílio, ainda quando a muitos deles Hitler prometesse mundos e fundos para não passar pela vergonha de os perder: um Thomas Mann é disto um símbolo, mas é apenas um nome em uma legião de escritores, artistas, professores, cientistas, etc., que não só enriqueceram a cultura de outros países, como levaram a da sua língua, elevando-a a alturas insuspeitadas em muitos lugares aonde o que dominava eram uma admiração reaccionária pela Alemanha de Hitler, aquela mesma atitude que fez proibir um filme profético como O Ditador, de Chaplin, ou fez um sujeito tido como heróico defensor da democracia, e que foi o chefe de guerra da Grã-Bretanha, reclamar para o seu país um Hitler, pouco tempo antes (tal como desejaria tê-lo vivo, quando inaugurou num discurso, anos depois, a chamada Guerra Fria). Esses exílios e essas fugas (como o martírio de muitos que, tendo ficado, foram assassinados) são uma glória da cultura germânica neste século, e salvaram-na, quando ela estava a ser destruída lá onde a língua era deturpada e as chaminés fumegavam. Em 1936-39 foi a vez da Espanha. Pode dizer-se que a maioria esmagadora da intelectualidade espanhola se pronunciou abertamente pela legítima República, ou manteve as suas distâncias em relação ao fascismo, ou, quando sucumbiu às tentações do primeiro impacto, como foi o caso do grande Unamuno que desprezava a burguesa e intrigante república, logo se elevou a alturas do mais nobre protesto. Ainda durante a guerra civil, ou no desastre final da República, os foragidos a uma repressão implacável foram mais que muitos: entre eles, alguns dos nomes maiores da Espanha nas letras e na educação superior, que profundamente contribuíram por toda a parte, mas sobretudo na Argentina, no México e nos Estados Unidos, para manter e viver as tradições de uma grande literatura, e para difundir, no mais alto nível, a dignidade da Espanha. Foi essa vasta pleiade quem formou e educou os hispanistas, um pouco por toda a parte, ou pela sala de aula, ou pela palavra impressa.
§ 04 Ainda mais que na Itália de Mussolini, o fascismo português organizou-se e tomou conta do poder com os pezinhos de lã, que soube usar uma vida inteira, desde 1926 a 1974, tão de lã, que só lhe ouvia os passos quem estava atento e sensível à liberdade que se perdia. Grande parte do povo, no continente, nas ilhas adjacentes, nas ditas províncias ultramarinas, achava que o Salazar impusera a ordem (não lhe era difícil, quando grande parte da desordem de 1910-26 havia sido provocada e feita pelos que o punham no poder), e incluía-o na Santíssima Trindade, ao lado do Futebol e da Nossa Senhora de Fátima, substituindo e eliminando, hereticamente com as bênçãos do clero hoje tão desmemoriado, o Deus Pai, o Cristo e o Espírito Santo (de especial devoção açoriana), como salvador e mantenedor da Pátria. A tal ponto assim era, que, esquecendo a liberdade (ou uma democracia de que, em parte nenhuma jamais se deram ao trabalho cívico de aprender o que seja sob qualquer forma), já há, ou nunca deixou de haver, quem chore aquele santinho do tempo em que era tudo fartura (para os que a tinham, é claro, e que continuam a ter). Criança que era, e adolescente que ia sendo depois, ainda recordo como republicanos da (“outra senhora”) se riam confiadamente, à espera da revolução que acabaria com aquilo tudo já, já... e tiveram tempo de morrer primeiro, porque aquilo de que eles se riam havia sido pacientemente construído de pedra e cal para resistir a tudo e mesmo se adaptar a todas as democracias deste mundo e do outro (não tem conta em Portugal os impolutos democratas que a gente conheceu aos milhares em posições, postos, e outras atitudes altamente comprometedoras da integridade pelo menos moral das suas pessoas físicas, mas temos de aceitar que tudo no mundo se faz com conversos e com arrependidos, e, é sabido, alguns dos maiores santos começaram por ser refinados patifes). De uma tal situação, em que só poucos se viram forçados a abandonar o país, durante os primeiros trinta anos de ditadura, resultou que Portugal, se bem que resistindo pela sua “inteligência”, podia ser totalmente ignorado fora do país, isolado que este estava por uma cortina espessa e de total silêncio. Pode dizer-se que, salvo casos isolados de grandes figuras, alguma diáspora só se produziu nos últimos vinte anos do regime, ou menos, e nunca em quantidades que pudessem modificar em tempo o tremendo peso de propaganda ou de retardada ignorância que encontrei no Brasil em 1959, quinze anos antes da Revolução de Abril ou, como já disse num poema, a Revolução dos Cravos e dos Cravas... Ao contrário do povo que sempre emigrou, o intelectual português, mesmo que do povo tenha saído ou com o povo encha a boca, a prosa e a mentirolice política, não emigra – ele sabe que, se alguém se for embora, fica mais espaço para ele no café aonde gasta o seu tempo, há menos riscos de concorrência para um emprego chorudo e mais agora que, não havendo dinheiro, este se fez para ser dado enquanto existe, e pode mais impunemente intrigar contra o que não está lá para se defender a tempo e horas com um murro nas sórdidas fuças do sujeito em questão. Porque, num país pequeno, aonde o intelectual, a menos que dignamente isolado e arrostando com a malignidade geral, vive dos compadrios, das benesses, da pura e simples prostituição ao menos semanal, é triste dizer mas é a verdade que 20 por cento são heróis e nem sempre, e os outros 80 por cento são canalhas. Quando não havia a liberdade, muita gente não tinha outros remédio senão fingir que era decente, ou a censura protegia a indecência de muita gente, sobretudo se esta atacasse os mais dignos e independentes, os de, como dizia o quinhentista Sá de Miranda, “antes quebrar que torcer”. Não, nós não tivemos a grande purga de uma diáspora de intelectuais. Temos tido, como acentuei antes, a secular diáspora de um povo inteiro. Eu sempre disse que, em Portugal, se a saída fosse inteiramente livre, ficavam lá umas centenas de ingénuos e de pobres pedintes, e uns milhares de ladrões a roubar-se uns aos outros. A nossa única purga tem sido o óleo de rícino de uma sociedade iníqua e desavergonhada, que se sucede no poder, de revolução em revolução, traindo tudo e todos, mesmo contra a autoridade, sempre desrespeitada, dos mais altos magistrados da Nação.
§ 05 Deixemos a pornografia, e falemos dos emigrantes. A este respeito, há equívocos de vária ordem. Por exemplo, quando há tempos se realizou na Brown University, sob a égide do seu Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros e da Fundação Calouste Gulbenkian, o admirável Simpósio sobre Fernando Pessoa, houve um cavalheiro que, conversando com minha Mulher, queria que ela considerasse o Pessoa um emigrante, o que ela contestou. E não pensámos mais nisso até que a solícita amabilidade de um jornal da Costa Leste imprimiu um artigo desse senhor atacando minha Mulher. Trata-se de um lamentável equívoco, obviamente. Fernando Pessoa passou alguns anos da infância e da primeira adolescência na África do Sul, não como imigrante (com i ), mas porque o padrasto era o cônsul português em Durban. Alguém alguma vez se lembrou de considerar neste mundo os filhos dos diplomatas de carreira, que muitos passam a vida a ser educados de país em país, como imigrantes am alguma parte? Algum país os considera, como se diz nos Estados Unidos, “residentes permanentes”? Evidentemente que não. Vejamos outro caso. Seja o luso-americano que pretende descobrir as suas origens, e se dedica ao estudo delas. É ele um imigrante? Seus pais e seus avós tê-lo-ão sido – ele não o é, por muito que se identifique com os problemas do imigrante, e a ajudar a resolvê-los se dedique. Consideremos o caso do imigrante que, ao fim de alguns anos, se naturaliza cidadão do país aonde vive. Tecnicamente, nem para o país de origem, nem para o país de adopção, ele continua a ser a palavra com e ou com i. No caso português, claro que lhe cantam de sereia, para que não deixe de enviar dinheiro para a santa terrinha que tanto precisa (e é um facto que precisa, arre) – mas que não pense ele que alguém, se ele lá puser os pés, o considera “português”: uma das mais arraigadas tradições de um país que tem tantas por ter evoluído tão pouco é que quem se naturaliza outra coisa é pouco menos que traidor, e deve ser riscado das listas nacionais. Eu mesmo, por exemplo, já perdi alguns prémios literários do Portugalório, a que me puseram a concorrer, com o pretexto, a tempo lembrado, de ser “cidadão brasileiro”. E tudo isto joga certo com o que eu disse acima: é estrangeiro no país quem sai de um país que sempre foi mais feito da gente que saíu do que da gente que ficou. O imigrante ou emigrante é então só aquele que, vivendo no estrangeiro, conserva a sua nacionalidade de origem? Estritamente assim é, ainda que muitos outros possam, com justa razão, compartir das suas saudades e das suas lembranças e costumes.
§ 06 À primeira vista, há uma enorme diferença entre entrar por baixo e entrar por cima, quando a gente vai com a família para o estrangeiro. E dir-se-ia que, por exemplo, ir para o Brasil que foi parte do Luso Império, e aonde se fala o português, será mais fácil. Claro que quanto ao grave problema da língua (para lá de diversas pronúncias, diversos valores semânticos, etc.) é mais fácil. Mas o caso é que por outro lado é mais difícil, diversamente para quem entra por baixo e para quem entra por cima. Quem entra por baixo, a gente pobre ou remediada que vendeu o que tinha para se estabelecer no estrangeiro, tem em geral parentes ou conterrâneos a quem se encoste, para arrostar com a xenofobia que sempre existe em toda a parte, e que no Brasil mais directamente visou sempre os portugueses, por muito que nos venham as pessoas dizer que tiveram um avô português, ou que os portugueses são exemplo de ordem e trabalho. Este anti-portuguesismo é claro que, desde a Independência, é uma manobra semiconsciente das classes dirigentes do Brasil para esconderem que, durante grande parte da época colonial, elas já mandavam e até governavam o império português em Lisboa, e que depois da Independência, necessitam de culpar a época colonial quanto às estruturas de exploração que mantiveram em seu próprio proveito. O triste é ver, no Brasil, gente, supostamente de esclarecida esquerda, aderir ou promover o que nitidamente é uma ideologia ao serviço dos imperialismos que se sucederam ao português (no qual havia muito que era a Inglaterra quem mandava, como longamente mandou na América do Sul até quase à Segunda Guerra Mundial). Mas o imigrante semi-analfabeto que se estabelece num Brasil, ou estabelecia, já estava habituado em Portugal a não ser tratado como gente; e que fosse Portugal ou a sua história, ou o Brasil e etc., era tudo para ele chinês e sem outra significação para lá do facto de saber-se discriminado, mas, não obstante, poder furar à caça de oportunidades de riqueza que a pátria (sabia lá ele o que isso era, se a pátria nunca se lhe dera a conhecer!) nunca lhe oferecera. Sentir no corpo ou na alma as pancadas físicas ou morais, claro que as sentia: mas nesse sentir não lhe doía a pátria maligna e ingrata, a não ser de maneira vaga, a que podia responder abrigando-se no seu gueto regional. Mas a quem entra por cima, e vai ensinar numa universidade, e lida com intelectuais e escritores, dói profundamente, com uma raiva que tem de engolir, o ver tanta gente inteligente a fazer às vezes um esforço bem intencionado e amigo para esconder uma quase aberta irracional hostilidade. Quem não concordará que é duro, para um português no Brasil, ouvir a mitologia de que o Brasil (que não existia mais que com índios na Idade da Pedra) foi assaltado pelos portugueses em 1500, que o dominaram até serem expulsos em 1822 (como se o país que lá está se não tivesse feito durante a época colonial, e com imensa gente “reinol” que se sentiu, com o tempo, “brasileira”)? É duro, é mesmo. Eu, que toda a minha vida fui anti-racista furioso e convicto, senti um dia uma cegueira racista no Brasil. Foi quando uma tarde, da janela do meu escritório, que dava para a grande praça aonde estava a escola primária que os meus filhos frequentavam, vi um dos meus rapazes sair dela, perseguido e violentamente espancado por uma meia dúzia de japoneses que lhe chamavam portuga... Vi tudo vermelho, saí cego à rua, e não sei como não matei alguns a pontapé pelos corpos em reboleta pelo chão adiante. Aqueles nipões de merda a agredirem meu filho, como eu um brasileiro de oito séculos, desde D. Afonso Henriques? Amo eu o Brasil? Nem se pergunta, profundamente. E chego a sentir a vaidade de que, sem deixar de amar Portugal, o amo mais e melhor do que muitos dos brasileiros que vomitam samba e feijão preto a toda a hora, para mostrarem uns aos outros como são bem brasileiros hein. Amo-o porque o escolhi, e não por ter tido o acaso de lá nascer. Amo-o porque amo um povo de milhões a quem uma centésima parte nunca perguntou o que o Brasil seja. Amá-lo-ei sempre e igualmente, mesmo que abandone a nacionalidade brasileira por outra, como eu disse num poema:
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. (...)
§ 07 E assim é de facto. No Brasil, ninguém me considera brasileiro, porque me mantive sempre um escritor português. Com um passaporte brasileiro, a América considera-me português. E em Portugal, sempre que lhes convém, lembram-se logo de que isso da dupla nacionalidade é uma grande conversa, e de que o que eu sou é brasileiro. Já tenho pensado, considerando que me estreei na crítica activa em 1942 com um artigo sobre o cabo-verdiano Jorge Barbosa, grande poeta (a um tempo em que raros, e ninguém dos mais jovens, dava qualquer atenção a essa gente que eu vira na sua miséria de ilhéus anos antes, como o descrevi num conto meu), em solicitar a cidadania cabo-verdiana. O pior é que não sou nem pareço crioulo, e não possuo por certo as credenciais que o meu amigo e meu altamente estimado como homem e escritor, Luandino Vieira, possui para ser branco, alourado e de olhos claros, em Luanda... Creio que, embora eu seja contra a independência dos Açores, uma vez que tal facto seja consumado e o governo de lá seja a meu contento, pedirei a cidadania açoriana: no fim das contas, a minha família paterna é de lá, meu pai nasceu lá, e de vários troncos sou de lá até pelo menos ao século XVIII, ainda antes da independência dos Estados Unidos. E é a ocasião de encerrarmos esta longa digressão justamente raivosa com o meu ser imigrante neste país.
§ 08 O caso é que, brasileiro há quinze anos, só vivi no Brasil cinco. E já conto vai para treze de Estados Unidos, cinco dos quais no Wisconsin, e os restantes até agora na Califórnia. Por muito que viajasse e viajei pelo país, enquanto vivi no Wisconsin, ver ou encontrar um português só indo a New York visitar o grande escritor Rodrigues Miguéis (outro drama da perfídia lusitana, porque é cidadão norte-americano), ou por acaso. Brasileiros havia muitos, por acordos que a Universidade tinha com as mais diversas Faculdades do Brasil. Nesse tempo, o Wisconsin-Madison era um dos maiores centros de estudos hispânicos e o que mais importante havia de estudos portugueses. Mas o que eu lá sofri... Nunca igualdade de oferecidos cursos foi obtida entre as literaturas brasileira e portuguesa: o mais que consegui foi que, por cada dois cursos de brasileira, se desse um de portuguesa. Ainda que, a nível de M.A. ou mais (ou até de B.A.), fosse eu quem os ensinasse todos. E um dia quem me salvou de uma situação em que perderia a cabeça, foi precisamente o admirável colega brasileiro que ensinava os cursos de filologia e linguística portuguesa, e cuja “brasilidade” obsessiva está acima de qualquer suspeita de indecente lusofilia! Esse inteligente, sensível e competente homem enfrentou num rompante a situação sem me dar tempo sequer a levantar-me – nem sequer terá sido amizade o que o moveu, mas o seu senso de justeza científica e da decência intelectual. Havia uma visita a Madison de uma larga colecção de jovens supostamente estudantes do ensino secundário ou técnico do Brasil (a gente sabe como nos nossos países estes grupos se escolhem, com uma data de sobrinhos do tio do cunhado, etc., e só entre os protegidos dos influentes locais), ou, se bem recordo, daquelas Minas Gerais que se gloriam de ter sido aonde uns quantos poetas dos fins do século XVIII, que eram de lá ou lá viviam, se juntaram às vezes ao serão, para conversarem vagamente de uma república à maneira dos Estados Unidos, da qual até seria presidente aquele que tinha nascido em Portugal, no Porto, e ficou também célebre como um dos nossos (ou brasílicos) maiores poetas da época, à força de celebrar em verso a sua Marília do Dirceu que era ele. Acabaram todos na cadeia, e o magno juiz que comandou o julgamento era precisamente, ido de Portugal, o grande mestre que todos reconheciam como tal: o poeta Crus e Silva, autor do satírico O Hissope (e mais tarde de belos poemas neoclássicos de grande interesse brasileiro, e reflectindo o seu amor por essa terra aonde ficou, julgador dos mártires acima referidos). No que foi muito claramente um julgamento de classe (e nada altera isto que um deles se tenha suicidado na prisão, parece que ao peso de pensar que acusara toda a gente para ilibar-se a si mesmo), foram condenados a degredo para fora do Brasil ou a cadeia, e só um dos conspiradores da conspiração que não chegara a haver mas a que as autoridades lusas haviam reagido excessivamente foi quem teve a pena de morte: aquele que não pertencia à classe de terra-tenentes, donos de minas, altos magistrados, etc., que os outros eram, mas um homem de classe muito inferior, conhecido pela alcunha que era ofício: o Tiradentes. E eles nem sequer sabiam ao certo se queriam a independência de Minas ou se visavam mais alto. Os heróis da Inconfidência Mineira (que o Tiradentes foi, assumindo ingenuamente responsabilidades que não tinha tido, enquanto os outros negaram tudo, e se acusaram mutuamente e a todo o mundo) ficaram para sempre heróis nacionais, e a gente nem pode dizer que só um par deles merece a honra de ser importante poeta, quanto mais a de herói que o não-poeta foi. Notemos que eram os mesmos que pouco antes haviam feito um patriótico (e mineiro) inferno contra o governador local e “reinol”, não por opressões e desmandos como eles diziam, mas porque o homem, de tendências liberais, quisera alterar as discriminações raciais existentes, admitindo gente de cor em cargos públicos e militares... A gente começa a pensar que, muitas vezes, os movimentos de independência são na verdade grandes empalmanços do poder por classes possidentes locais que não querem ver os seu privilégios ameaçados (como, em muitos casos, foi sempre a briga entre a gente das Américas, inglesa, portuguesa ou espanhola, e as mães-pátrias), e que quem pensa que é esclarecido por julgá-las “populares” deveria olhar para o que se passa nos Açores portugueses ou nas Canárias espanholas de hoje. Voltemos a Madison e aos meninos de Minas Gerais.
§ 09 Trazidos aos States para se passearem oficialmente, eram ali recebidos naquela ocasião pelos estudantes de Português da Universidade. Os meninos e meninas do Brasil diziam das suas impressões da América (o que mais os impressionara era a neve que ter ficado a pensar que é um dos grandes produtos norte-americanos, esquecendo que é igualmente produto da Sibéria aonde as temperaturas são madisonianas). Até que umas das meninas vivaças perguntou: - Mas nóis estamos falando aqui e vocês ainda não disseram a razão de estarem estudando português para a gente –. Os meninos e meninas americanos (não havia luso-americanos ou criaturas semelhantes lá, e recordo que um Português da América teve a sua entrada negada nos estudos de Português, até que eu descobri que a sua papelada, recusada mais do que um ano, não tivera nunca andamento) entreolharam-se deliciados, e um deles gritou: – Porque gostamos muito do Brasil (aplausos), e porque não temos de aprender a língua com pronúncia portuguesa (aplausos delirantes de ambas as partes ali representadas). O meu colega levantou-se, e gritou: – Protesto como brasileiro e como filólogo e linguista contra a absurdidade que acaba de ser dita. Não se ama um país pela sua pronúncia, e todas as pronúncias do português são igualmente válidas –. Houve um gelo, e a reunião dissolveu-se sem mais. Mas naquele tempo a obsessão norte-americana com a pronúncia do Brasil era geral, e ainda hoje domina o ensino nos Estados Unidos, lá mesmo aonde seriam portugueses quem a ensinaria a quem estudar em português. Uma breve nota acerca destas atitudes tem até grande interesse para a história da diplomacia. Em Madison, uma vez, recebeu-se a visita do embaixador do Brasil, ou de um seu representante. Não me lembro ao certo, mas lembro-me muito bem de que, com ele, vinha um ministro-conselheiro da Embaixada em Washington, que, numa reunião com os alunos mais avançados, a que assistíamos os professores de Português, me perguntou alto e bom som se eu não achava que eu constituía um problema para o ensino, com a minha pronúncia portuguesa...
§ 10 Em 1970, aceitando o convite da Universidade da Califórnia, para este Estado me mudei, com a promessa de que viria desenvolver os estudos de Português e os de Literatura Comparada em Santa Barbara, o que tenho tentado fazer. Mas desde logo senti que estava num outro mundo (não quero referir-me à atmosfera mesclada de cenário de Hollywood e de acampamento, que é a da Califórnia, à excepção de San Francisco e vizinhanças, e que ainda hoje me incomoda, se a comparo com o ar venerável e assente no chão das casas do Wisconsin ou da Nova Inglaterra), um mundo aonde os portugueses, ainda que fizessem tudo para ser invisíveis, existiam. O que se tem passado de uns sete anos a esta parte, nesta Califórnia, quanto a despertar luso e luso-americano, parece mentira. E eu sou dos que menos têm feito, ainda que persistentemente, para isso: sem outros, nada. Mas deve acentuar-se que o divórcio entre comunidades e as Universidades (único lugar aonde Português se ensinava e não em todas, muito longe disso), era praticamente total. Nem os universitários se dirigiam à comunidade luso-americana, nem esta procurava estudos de Português, uns e outros ou distraídos ou engabelados na obsessão norte-americana com a “integração” que hoje vai passando, e nada tem que ver com uma acertada educação bilingue, ou com a busca das raízes que, em falsas demagogias, se encoraja mitologicamente que as minorias (e as maiorias) procurem – e os portugueses não são uma coisa nem a outra. Na escola primária, tive de brigar com uma professora que, perguntando ao meu filho mais novo que língua falava em casa (não pela pronúncia que ele, bilingue, não tinha, mas pelo nome que a ela lhe terá soado “chicano”), e sabendo que era português (língua que terá pensado ser um dialecto do espanhol como mentirosamente dizem aos estudantes, dissuadindo-os de estudar algo que lhes estragará a pura pronúncia hispânica que terão adquirido a ouvir fitas magnéticas com muitos olés e viva tu madre), lhe disse categoricamente que – agora que estava na América – não devia falar senão inglês, e recusar-se a responder em português quando os pais falassem nessa língua...
§ 11 De modo que a gente chegou catedrático professor, instalou-se, ganha na verdade uma miséria a comparar com o que um português da Califórnia ganhará a ordenhar honestamente vacas que não falam língua alguma, vive num meio dito intelectual, não está (infelizmente eu, em Santa Barbara, não estou) em contacto permanente com a sua “colónia”, mas, graças às igualdades democráticas, vive exposto às mesmas discriminações, e às vezes até mais subtis, que os outros. Pois não há lugar que a tal sirva como as universidades, em qualquer parte do mundo. Sem esta gente de universidade, que tenho conhecido em muita parte, a cultura não se estabeleceria com continuidade, a ordenação dos estudos não se faria. E há entre ela nobres e devotadas criaturas. Mas deixem-me confessar que, tendo mudado de pele, de continente, de vida, de nacionalidade, de tudo, menos de mim mesmo, durante anos e anos, nunca encontrei, em nenhum dos mundos e submundos em que as dificuldades da vida me fizeram viver, uma tão alta percentagem de prostitutas como nesta minha profissão de já vinte anos. Mas, descontando a consciência de culpa do puritanismo, que não é da tradição portuguesa, consideremos que as prostitutas sempre alegraram a vida de muito solitário, e ensinaram a fazer amor como deve ser a muito rapaz sem talento para isso. Assim é com as universidades, como com a imigração (com i, e também com e). E, como diz o povo de Portugal, aqui me cerro que esta já vai longa.
Jorge de Sena
*Este foi um dos últimos textos escritos por Jorge de Sena, cerca de três meses antes de falecer. Havia-lhe sido pedida colaboração para Gávea-Brown e essa chegou acompanhada de uma carta com data de 18 de Fevereiro de 1978, onde Jorge de Sena dizia: “… só ontem, emergindo, por horas que só acabaram agora, do meu inferno burocrático ou de provas de livros que nem tenho tempo para corrigir, nem dedicatórias para eles me pedem de Lisboa e ficam por fazer, é que eu consegui o tempo e a inspiração para escrever de um jacto, só interrompido para dormir um pouco, essa colecção de pontapés e de dentadas que há muito eu tinha armazenadas e que o seu pedido desencadeou (com grande perigo de que eu comece a contar as histórias das prostitutas universitárias, machos e fêmeas, que há décadas tenho conhecido e aturado em tantos continentes e países).”»
(roubado algures na blogoesfera)
Etiquetas: Jorge de Sena, Portugal
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