Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Advertência



Podendo, de bom grado se teria passado sem tanta mitologia.
Mas estamos convencidos que o mito é uma linguagem, um meio de expressão – quero dizer, não uma coisa arbitrária mas antes um viveiro de símbolos a que pertence, tal como a todas as linguagens, uma particular substância de significado que mais nada poderia dar. Quando repetimos um nome próprio, um gesto, um prodígio mítico, exprimimos em meia linha, em poucas sílabas, um facto sintético e compreensivo, um miolo de realidade que vivifica e alimenta todo um organismo de paixão, de estado humano, todo um conjunto conceptual. Se depois este nome, este gesto nos for familiar desde a infância, desde a escola – tanto melhor. A inquietude é mais verdadeira e cortante quando agita uma matéria costumeira. Aqui contentámo-nos em servir-nos de mitos helénicos dada a perdoável voga popular destes mitos, dada a sua imediata e tradicional aceitabilidade. Temos o horror de tudo o que é incomposto, heteróclito, acidental, e tentamos – até materialmente – delimitar-nos, impor-nos a nós próprios uma moldura, insistir numa concluída presença. Estamos convencidos de que uma grande revelação só poderá sair da teimosa insistência numa mesma dificuldade. Não temos nada em comum com os viajantes, com os experimentadores nem com os aventureiros. Sabemos que o modo mais seguro – e mais rápido – de nos espantarmos é fixarmos impávidos o mesmo objecto. Num belo momento, este objecto parecer-nos-á – miraculoso – que nunca o tínhamos visto.

Cesare Pavese, In ”Ofício de Viver”, diário de Pavese, onde este texto é indicado entre parêntesis como Prefácio aos Diálogos (“Diálogos com Leucó”), tendo aí sido publicado como advertência

Etiquetas: