Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sábado, 11 de agosto de 2012

Aeroporto


    É o fatídico mês de Março, estou
    no piso superior a contemplar o vazio.
    Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
    e olha-me, obliquamente, nos olhos:
    Não voltas mais? Digo-lhe só que não.
   
    Não voltarei, mas ficarei sempre,
    algures em pequenos sinais ilegíveis,
    a salvo de todas as futurologias indiscretas,
    preservado apenas na exclusividade da memória
    privada. Não quero lembrar-me de nada,
   
    só me importa esquecer e esquecer
    o impossível de esquecer. Nunca
    se esquece, tudo se lembra ocultamente.
    Desmantela-se a estátua do Almirante,
    peça a peça, o quilómetro cem durando
   
    orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
    Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
    o sono do bronze na morte obscura das estátuas
    inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
    apenas no precário registo das palavras.

    Rui Knopfli, in "O Monhé das Cobras"

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