Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Pátria



Um caminho de areia solta conduzindo a parte

nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,

eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também

tinham nome por que era costume designá-los.

Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal




e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso

e misterioso, habitado por deuses e duendes

de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados

que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,

com valados, elevações e planuras, e mais rios




entrecortando a savana, e árvores e caminhos,

aldeias, vilas e cidades com homens dentro,

a paisagem estendia-se a perder de vista

até ao capricho de uma linha imaginária. A isso

chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso




obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,

o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço

indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.

Ou tambores de paz simulando guerra. Esta

não se terá feito anunciar por tal forma




remota e convencional. Mas o sangue adubou

a terra, estremeceu o coração das árvores

e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma

só e várias línguas eram faladas e a isso,

por estranho que pareça, também chamávamos pátria.




De quatro paredes restaram as paredes. Com as folhas

de zinco e a madeira ferida dos travejamentos

perfaziam uma casa. Partes de um corpo

desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio

as atravessam e nelas não dura a memória




que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,

talvez, chorar pátria e infância, os mortos que

lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro

amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou

para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse




e o polígono demarcado, conservando embora

a original configuração, fosse percorrido por

um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos

e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente

o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.




Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta

e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,

circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial,

Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,

que se dizia conduzir a parte alguma, abria




para o mundo. A experiência reduz, porém,

a segunda à primeira das asserções: pelo mundo

se alcança parte nenhuma; se restringe ficção

e paisagem ao exíguo mas essencial: legado

de palavras, pátria é só a língua em que me digo.



Rui Knopfli

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