Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Cada coisa a seu tempo



Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.

Não florescem no inverno os arvoredos,

Nem pela primavera

Têm branco frio os campos.



À noite, que entra, não pertence, Lídia,

O mesmo ardor que o dia nos pedia.

Com mais sossego amemos

A nossa incerta vida.



À lareira, cansados não da obra

Mas porque a hora é a hora dos cansaços,

Não puxemos a voz

Acima de um segredo,



E casuais, interrompidas, sejam

Nossas palavras de reminiscência

(Não para mais nos serve

A negra ida do Sol) —



Pouco a pouco o passado recordemos

E as histórias contadas no passado

Agora duas vezes

Histórias, que nos falem



Das flores que na nossa infância ida

Com outra consciência nós colhíamos

E sob uma outra espécie

De olhar lançado ao mundo.



E assim, Lídia, à lareira, como estando,

Deuses lares, ali na eternidade,

Como quem compõe roupas

O outrora compúnhamos



Nesse desassossego que o descanso

Nos traz às vidas quando só pensamos

Naquilo que já fomos,

E há só noite lá fora.




Fernando Pessoa

(Ricardo Reis)

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