Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Como encarar a morte


Ilha de Moçambique

De longe



Quatro bem-te-vis levam nos bicos

o batel de ouro e lápis-lazúli,

e pousando-o sobre uma acácia

cantam o canto costumeiro.



O barco lá fica banhado

de brisa aveludada, açúcar,

e os bem-te-vis, já esquecidos

de perpassar, dormem no espaço.



À meia distância



Claridade infusa na sombra,

treva implícita na claridade?

Quem ousa dizer o que viu,

se não viu a não ser em sonho?



Mas insones tornamos a vê-lo

e um vago arrepio vara

a mais íntima pele do homem.

A superfície jaz tranquila.



De lado


Sente-se já, não a figura,

passos na areia, pés incertos,

avançando e deixando ver

um certo cógifo de sandálias.



Salvo rosto ou contorno explícito,

como saber que nos procura

o viajante sem identidade?

Algum ponto em nós se recusa.



De dentro



Agora não se esconde mais.

Apresenta-se, corpo inteiro,

se merece nome de corpo

o gás de um estado indefinível.



Seu interior mostra-se aberto.

Promete riquezas, prêmios,

mas eis que falta curiosidade,

e todo ferrão de desejo.



Sem vista



Singular, sentir não sentindo

ou sentimento inexpresso

de si mesmo, em vaso coberto

de resina e lótus e sons.



Nem viajar nem estar quedo

em lugar algum do mundo, só

o não saber que afinal se sabe

e, mais sabido, mais se ignora.




Carlos Drummond de Andrade

(À minha Avó)

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