Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Segundo canto para a renovação do Natal





A Noémia de Sousa



Tudo foi emprestado e alheio
Para que Deus nascesse conforme as Escrituras:
A gruta, que os presépios embelezam,
- Ou talvez um estábulo?
- Ou talvez o ventre autêntico da mãe?
A burra e a vaca,
José, que era o pai cómodo,
E a mãe, que era o empréstimo supremo,
O recurso, a verdade
E a necessidade
Para que Deus nascesse entre os homens,
Mais do que Deus,
Um Homem.
Havia os magos com presentes deslocados,
O astro dos sinais,
A voz, o anjo, os pastores e a frase
Que nos presépios fabricados
Fala da paz, dos homens e da boa-vontade.
Havia a noite e nós,
Filhos de pai e mãe,
Nascidos antes e depois à espera de que Deus viesse,
Fruto d'A que não teve marido neste mundo
Para que o filho deslizasse sem pecado.
E havia Herodes,
Para que não fosse fácil
O que era inevitável.
E houvesse drama.
Ora bem.
Entre a burra e a vaca,
Dentro do hálito tépido das bestas,
Sobre as palhas
E ao nível das tetas,
O menino jazia
Nascido,
Que é como quem diz cumprido
Da promessa que havia.
José,
Os magos e os pastores
Tinham a sua fé;
A estrela tinha o seu ofício de ser estrela;
A noite e as bestas tinham a sua inconsciência,
Que é tudo,
Porque tudo e nada são a mesma coisa;
O Menino tinha o mistério de ser menino
E já Deus;
Ela, Ela tinha a miséria de ser mãe
E só mãe.
Ela é o Natal.
Ora bem.
Não falemos de Herodes, nem dos magos, nem dos pastores,
Nem sequer de José,
Do amável, do amoroso José
Que nos enternece
E discreto desaparece
Pela esquerda baixa
Do primeiro quadro da tragédia
De que somos o coro
- E também a tragédia.
Mas falemos d'Ele,
Que Ele é Ele,
Mesmo quando se faz pequenino
Para ter o nosso tamanho.
Não falemos da noite,
Que é um pouco mais que tudo isso,
- E menos do que a mãe,
De quem falemos.
Ora bem.
Ela ali estava para ser pintada.
Para ser pintada na vista do conjunto
Que é o Natal,
Comparsa dos presépios que hão-de vir,
Entre arraiais e foguetes
E estrelas de papel.
Ela ali estava para ser pintada
Na fuga para o Egipto,
Ao trote gracioso do burrito,
Sem vaca, só com José e o deserto e as escrituras,
Que mandam mais que Herodes
E todos os seus bigodes.
Ela ali estava para ser pintada.
Para ser pintada – pouco e bem –
Sem o burrito, só com Sant'Ana e S. José
No breve engano de ser só mãe
Dum filho que fosse só filho.
Ela ali estava para ser pintada
No alarme de Jesus entre os doutores.
Ela ali estava p'ra não ser pintada
Depois que Jesus fez trinta,
Antes dos trinta e três
(Disseram trinta doutores:
- Diga trinta e três.
Ele disse.
Ele disse e morreu
Sem sofrer dos pulmões).
Ela ali estava para ser pintada
E no zénite de Jesus ser Jesus,
Depois dos trinta,
Quando Jesus
Fez
Trinta e três,
Ela ressuscitou pintura ao pé da cruz.
Ora bem.
A cruz que Ele trazia,
Mal lhe pesava.
Ele esperava.
Ele salvava.
Ele descia
E por isso subia.
Ela era mulher, era mãe – e Sabia.
A sua cruz
Era Jesus.
O seu inferno
Era ser mãe do Eterno
Que havia de sangrar
E morrer
Pelo caminho.
Por isso é que Ela mal se vê no palheiro,
Que é como quem diz, no estábulo.
Não é a estrela que A deslustra
(O Universo e todos os seus astros
Não valem o que Ela é);
Não são os magos que A repelem
Para o canto, de não ser rainha,
Porque Ela o é dos reinos que eles buscavam;
Não é José que A excede, porque José é José,
E isso lhe basta sem ser bastante;
Não é o Filho que A tolda,
Porque Ela é a Mãe.
Ora bem.
É ser a Mãe.
É ver que o Seu menino
Não é apenas menino,
Mas a dose anunciada
De Homem e Deus;
A ponte que tem de ser pisada
Para que haja estrada
Para os céus;
É o ser-lhe filho e ser-lhe pai,
O filho que Ela estremece
Vivo e já morto,
Porque o Pai quer e Ela obedece.
Irmãos em Cristo!
Irmãos do mesmo pai,
Quem quer que seja o Cristo
Que buscais.
Esta é a Sua hora!
A Sua – e a nossa.
Ela é o Natal.
Avé-Maria.
Ora bem.



Reinaldo Ferreira “Poemas” Livro III - Poemas de Natal e da Paixão de Cristo

(Para todos um Feliz Natal)

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domingo, 23 de dezembro de 2007

Pouco me importa

Avó4



Pouco me importa.

Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.



Alberto Caeiro




(À minha Avó, que me abriu os olhos para tudo o que é belo, e faz hoje 40 anos que faleceu em Lourenço Marques.)

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sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O Haver



Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes, In "Jardim Noturno - Poemas Inéditos", Companhia das Letras - São Paulo, 1993

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sábado, 15 de dezembro de 2007

Sonho



"Se um dia o sonho se cumprir,
Compro uma Ilha.
Não muito longe do litoral,
Nem muito perto.
Ficará no justo ponto de latitude e longitude,
Onde protegida de ventos, sereias e pestes,
Não me afaste muito dos Humanos.
Quero ter a arte do bem viver,
Uma fuga relativa,
E não uma estouvada confraternização.
E só de imaginar já me considero sua habitante.
Gostava que tivesse uma ponte
Que não tivesse de desdizer"

MD

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sábado, 8 de dezembro de 2007

Tudo o que faço e medito



Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

Fernando Pessoa

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

À Venezuela

"Con Toda Palabra"

Depois de saber os resultados do referendo, não resisti...


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Now playing: Stereophonics - Angie
via FoxyTunes

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Now playing: Nancy Sinatra - As Tears Go By
via FoxyTunes

sábado, 1 de dezembro de 2007

Dia da Restauração


Bandeira de Portugal 1640





Defenestração de Miguel de Vasconcelos no Terreiro do Paço
(para avivar a memória de alguns...)





El-Rei Dom João IV "O Restaurador"




Aclamação de Dom João IV como Rei de Portugal







Pavilhão de El-Rei Dom João IV


"De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento"

(Ditado popular)