Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sexta-feira, 28 de julho de 2006

LM

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Baixa Laurentina




Desde a esquina do djambu

‘té à do continental

trato os passeios por tu

e um parquímetro mais cómodo

é meu guru pessoal

Encostado e repimpão



olho a ladeira plana

subindo a partir do chão

de cada ponto opção

dos extremos da semana



Conto os passos de quem passa

passeando as dores passivas

passa uma velha uva passa

uma manga femeaça

um ceguinho sem mordaça

um vendedor de caraças

e olhodoins de ameaça

miram rebanhos de chivas.



Mil uvas de várias cores

vão irmãs do mesmo cacho.

Do branco ao tinto é um ror

de perfumes. Preto é cor

negro é raça dum diacho!



Avé, vida da ré pública!

cruza ao gosto do gatilho

numa cruz que não explica

onde é que a cruz simplifica

a trajectória do milho



tudo vai melhor amigo

com coca cola e quejandos

espetam a palha no umbigo

e iniciem o mim migo

ciclo de dor e castigo

pescadinha ao gosto antigo

memimigo memimigo

entoladinhos e bambos



vou aos saldos do jònór

comprar mais antipatia

e uma quinhebta de dor

no muro sotomaior

a ajudar a rebeldia



faço mira pela estrela

dum super branco mercedes

e enquadro a ramela

do cego de sentinela

a uma vitrine de sedas



que capulana bonita

traz a mitó amaral

veio, juro, da botica

mais chicqueira, mais bonita

mais xi... cara patrão! (chita

de pele humana e mortal)


raios pátriam esta tonta

partida dos deuses. Haja

um fim para esta ronda

de paisanos songa monga

com apetites de gaja...


do continental ao djambu

- meu privado festival –

trato os passeios por tu

e um parquímetro guru

é minha espinha dorsal...



Grabato Dias



quinta-feira, 13 de julho de 2006

Eu Rosie, eu se falasse, eu dir-te-ia



Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.

Reinaldo Ferreira, "Poemas" Livro I - Um voo cego a nada

terça-feira, 11 de julho de 2006

O macaco e o cágado




"O macaco e o cágado fizeram-se amigos. Certo dia, o macaco disse:
- Amigo, vem a minha casa.
O cágado respondeu:
- Está bem.

O cágado saiu e foi a casa do seu amigo. Quando lá chegou, o macaco
matou um galo, fez echima, pô-la na mesa e disse:
- Amigo, vamos lá comer a echima.
- Ah, o meu amigo pôs a echima na mesa sabendo que eu não consigo
subir? - pensou o cágado. Tentou subir, tentou, mas não conseguiu
comer a echima! Por fim resolveu ir para casa, mas antes pediu ao
macaco:
- Amigo, dá-me as minhas ferramentas para me ir embora.
Quando estava para sair, perguntou ao macaco:
- Quando é que vais a minha casa?
- Hei-de ir na próxima semana - disse o macaco.
- Está bem - respondeu o cágado.

Na semana seguinte, o macaco foi a casa do amigo. Quando lá chegou,
mataram um galo, fizeram echima. O cágado deitou fora a água das
panelas e disse para o amigo:
- Não há água, mas podes lavar as mãos no poço. Tem cuidado para
não as pores no chão quando voltares.

O macaco foi ao poço com a sua mulher. Lavou as mãos e começou a
andar só com duas patas. O cágado tinha queimado todo o capim à
volta da casa e havia muita cinza. Quase ao chegar, o macaco não
aguentou mais e pôs as mãos no chão ficando com elas todas sujas.
Teve que voltar ao poço para as lavar de novo. Fez isto tantas vezes
que acabou por desistir. Foi com a sua mulher despedir-se e pedir as
suas ferramentas. A partir daí o macaco e o cágado nunca mais
voltaram a ser amigos."

"Contos Macuas",1992, ed. Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique, p. 16, coordenação de Elisa Fuchs e ilustrações de Malangatana.

Adenda: Um pouco mais de paciência para ler tudo isto em letra pequena, pois é impossivel formatar de outra maneira, sem adulterar os parágrafos.

domingo, 9 de julho de 2006

Carta para um amor



Cidade!,
nunca fui mais longe do que
à raia de Espanha.
Creio amar Paris,
conheço Paris dos filmes, a Concórdia
dos postais, a Torre Eiffel divulgada,
Hitler passando sob o Arco do Triunfo.
Amo Paris em Aragon e Eluard,
Paris dos pintores, Paris de Erenburgo.
Amo outras cidades, todas as grandes
cidades.
Madrid dos espanhóis e do coração despedaçado,
Stalinegrado das batalhas, Berlim do triunfo.
Nunca fui às grandes cidades,
amo-as porque os homens mas ensinaram
a amar.
Conheço Lisboa grande e colorida,
longe dos meus sentidos
e Johannesburg do ouro e do pó.
Nunca fui a New York ou São Paulo
do Brasil.
Chicago, Los Angeles, Londres,
Moscou, Rio, não conheço,
não conheço as grandes cidades,
que as há,
do estado de Massachusetts
ou da beira do Nilo.

Cidade!,
amo em retórica discursiva
as outras cidades.
Das viagens que tenho feito,
por rotas tão diferentes,
és sempre a meta, cidade que amo
desde sempre,
- para lá dos poetas, dos pintores,
dos filmes e da retórica discursiva.
Os nossos companheiros tiveram
a coragem de partir,
vivem nas grandes cidades, com história,
do mundo,
eu fui covarde e fiquei.
Experimentei, e não soube, viver longe de ti
noutras cidades.
Sei que este meu amor é a minha mediocridade
também,
a mediocridade de quem não teve asas
para subir mais alto
e orgulho, o orgulho que nada venceu,
nem o ser estranho na própria terra.
É uma ternura que escorre
das tuas tranquilas avenidas de acácias
e jacarandás,
dos claros prédios,
da população colorida,
da mansitude da baía,
do teu ar de provinciana janota.
Cidade, menina fútil
de pouca história,
carros pequenos nas ruas,
velas na baía, patinadores nos ringues,
terra de sete estuários,
de cinemas e cafés buliçosos,
de alegrias e pequenas traições,
leviana, ingénua, snob, bonita,
mulata, branca,
hindu, negra,
de cabelos louros e olhos amendoados,
morena sensual,
terra índica, minha terra,
minha amada inocente, prostituída.

Amo-te cidade da infância,
com girassóis e casa de madeira e zinco
a dormir na neblina da memória.
As quadrilhas de arco, flecha e pistola
de fulminantes,
os esconderijos da barreira,
o sexo e as coxas morenas de Xila,
a Sete de Março da política e dos antigos cafés,
a tristeza verde-negra do Enes,
o paço do senhor bispo
e S. Navio todos os meses.

Quebrou-se esse velho espanto
e nossos companheiros
tiveram a coragem
de partir para outras cidades,
com história, do mundo
(Para eles tua lembrança é
fugitiva mágoa).
Só,
eu fiquei abraçado a este amor anónimo.

Rui Knopfli

domingo, 2 de julho de 2006

Amigos



Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.
Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta
necessidade que tenho deles.
A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor;
eis que permite que o objecto dela se divida em outros afectos, enquanto o amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.
E eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!
Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus amigos e o quanto minha vida depende de suas existências.
A alguns deles não procuro; basta-me saber que eles existem;
esta mera condição, me encoraja a seguir em frente pela vida.
Mas, porque não os procuro com assiduidade, não posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.
Muitos deles estão lendo esta crónica e não sabem que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.
Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro, embora não declare e não os procure.
E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente, construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado.
Se todos eles morrerem, eu desabo!
Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.
E me envergonho, porque essa minha prece é, em síntese, dirigida ao meu bem-estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo!
Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.
Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos, cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando daquele prazer...
Se alguma coisa me consome e me envelhece, é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber que são meus amigos!
A gente não faz amigos, reconhece-os.

Paulo Sant’Ana

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