Um Voo Cego A Nada...

" Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo". Rui Knopfli

sábado, 22 de abril de 2006

Mangas Verdes com Sal


Mangas verdes com sal
Sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido

na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo,

à boca ardida,
à crista do tempo,
ao meio da vida.


Rui Knopfli, "Mangas verdes com sal", 1972, 2ª ed, LM, Minerva Central

sábado, 15 de abril de 2006

Naturalidade



Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável ... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli

quinta-feira, 13 de abril de 2006

O Ponto


Mínimo sou,

Mas quando ao Nada empresto

A minha elementar realidade,

O Nada é só o resto.




Reinaldo Ferreira, poema autográfico, in "Poemas", Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960.

terça-feira, 11 de abril de 2006

Timbre


EU,


Morreu.


Só há ideal


No plural.


Tecidos


Como os fios que há nos linhos,


Parecidos


Entre nós como dois olhos,


Somos do tempo de viver aos molhos


Para morrer sózinhos.



Reinaldo Ferreira, poema autográfico, in "Poemas", Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960.